26/12/2010

O bonde volta às grandes cidades.


Durante um século o bonde foi o principal meio de transporte urbano nas grandes cidades brasileiras. A primeira linha, no Rio e no Brasil, a Praça Tiradentes-Usina, foi inaugurada em 1859. Inicialmente a tração animal, depois movido a energia elétrica o bonde marcou profundamente da segunda do século a cidade até a década de 60. Chegamos a ter 300 km de linhas de bonde. O bonde tornou-se uma cultura, um folclore que povoou intensamente o imaginário popular.



Nos Estados Unidos o tramway ou street car foi destruído, de forma quase fulminante, no pós-guerra. As grandes fábricas de automóveis compraram os sistemas de bondes das grandes cidades americanas e deliberadamente os desmantelaram. Os EUA entravam na era das freeways, a classe média abandonava os centros de cidade e ia se instalar nos novos subúrbios distantes em ruas arborizadas com casa, jardim e piscina. Sua dependência em relação ao automóvel era total e o fim dos bondes coincidiu com um momento de abandono e decadência dos próprios centros urbanos.

Na cidade do Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara, nos anos 60, os bondes foram desmantelados no raiar da era da nossa industria automobilística. 300 km de uma rede muito abrangente que cobria muito bem a zona sul e a zona norte foram desativados em nome do "progresso", restou apenas o bonde de Santa Teresa. Até os dez anos eu ia de bonde para o colégio. Estudava na British School, na rua da Matriz em Botafogo e pegava o bonde na Marques de Abrantes, onde morava. Em vinte minutos estava na esquina da rua São Clemente com a da Matriz. Era sinal dos tempos um garoto de nove anos ir à escola sozinho de bonde, mas na época era normal. Se me lembro bem, comecei aos sete. Me lembro do bonde verdinho, do volante redondo com uma empunhadeira, do maquinista de do condutor de uniforme azul marinho e quepi quase militar, da forma com que o trocador segurava as notas, entre os dedos, em leque, para facilitar o troco, do chiado do bonde sobre os trilhos e, claro, da sensação de pular do estribo do bonde em movimento, sem cair, ou saltar para o estribo com ele andando, o grande desafio iniciático do garoto macho.

Inicialmente, eles foram substituídos pelos troleybuses, apelidados de “chifrudos” que depois foram eliminados também. O transporte urbano passou a ser dominado pelas empresas de ônibus cujos donos eram quase sempre antigos motoristas de “lotação”, quase todos "portugas" que, enfim ganharam sua guerra contra os bondes. Seus grandes aliados foram os automobilistas como meu pai com seus carros americanos importados --Hilman, Ford e Mercury, no caso dele-- que ficavam xingando a lentidão dos bondes e deram "graças a Deus" quando acabaram. As marcas dos bondes permanecem nas cidades brasileiras: trilhos, estações e algumas velhas linhas residuais de com um forte significado histórico sentimenta,l como o bonde de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

Diversas grandes cidades européias que, ao contrário dos Estados Unidos, nunca abandonam o seu transporte ferroviário, e que iniciaram a construção de seus sistemas de metrô, já no início do século XX, quando isso era mais barato --ao contrário do Brasil que o fez nos anos 70-- também abandonaram o bonde. No pós-guerra, embora tenha sobrevivido na Europa Oriental, nos países do socialismo real, em alguns países nórdicos, e em Portugal onde não era chamado “bonde” mas “ elétrico”, ele desapareceu das grandes metrópoles como Paris, Londres, Roma que ampliaram seus metrôs, construíram metros expressos de alta capacidade e se encheram de carros.

Mas o bonde nunca morreu. Parafraseando a famosa frase de Mark Twain diante de um falso obituário seu publicado erroneamente por um jornal: “as noticias sobre a (minha) morte foram consideravelmente exageradas”, pode se dizer que quem assinou o atestado de óbito dos bondes, precipitou-se pois agora eles reaparecem triunfalmente em várias cidades: Strasbourg, Lion, Grenoble e, finalmente, de novo, Paris, eles voltaram, sob a forma de VLT: Veículo Leve Sobre Trilhos, o bonde moderno. Paris, desde o início da presente década implanta uma linha de VLT no semi-círculo sul das chamadas avenidas dos Marechais, paralelas e interiores ao Boulevard Periférique, de 36 km, que dá a volta completa à cidade.

Em Melbourne, na Austrália, considerada por muitos a cidade do mundo que melhor resolveu seu problema de mobilidade, o VLT, tramway moderno e confortável é uma instituição. Há uma rede radial de trens e bondes entre o centro e vários subúrbios, com os ônibus fazendo uma ligação entre eles, diretamente.

O bonde moderno tem um custo de implantação relativamente alto e implica em obras que de algum modo transtornam a vida da cidade porque interditam completa o parcialmente avenidas importantes. Não há como utilizar os antigos trilhos das redes de bondes do passado, eles estão quase sempre cobertos pelo asfalto e tecnicamente não se adaptariam ao tipo de veículo hoje utilizado.

O impacto das obras sobre o dia a dia da cidade durante dois ou três anos é seu problema maior. Mas uma vez superada essa faze de implantação em obras não há veículo mais apropriado para o transporte de massas urbano do que esse que dá aos usuários um transporte de excelente qualidade, com pontos de parada freqüentes, ao contrário do metrô. É o dono das avenidas, corre sempre pela parte central da pista ocupando metade do espaço disponível e deixando pistas estreitas de mão e contra-mão dos lados para os automóveis. Nas áreas centrais é o grande meio de transporte. Ao contrário dos antigos, é silencioso, esbanja conforto e tem como efeito cultural colocar o tecido urbano numa era pós-automóvel. Numa era onde é imperativo reduzir as emissões de CO2 na mobilidade urbana essa é a melhor vingança do bom e velho bonde sobre seu histórico carrasco de quatro rodas...


Do passado ao futuro (na foto, Melbourne)

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