(publicado no Estado de São Paulo) Seguramente muitos dos que criticam o fato do
programa de Marina Silva afinal não ter encampado o PL 122, “contra a
homofobia” --inclusive a presidenta Dilma, sua defensora tardia—não devem ter
lido direito essa peça legislativa bisonha e tecnicamente mal ajambrada. Legislação penal não tem porque constar do programa
de governo. Cabe ao legislativo. De qualquer maneira vale a pena conhecer algumas
disposições do substitutivo ora em tramitação no congresso. Pune com pena de
prisão fechada delitos sem violência: palavras e atitudes de
discriminação, algumas de caracterização bastante complexa na vida real. Por
exemplo: “II – ofender a honra das
coletividades previstas no caput” (comportamentais e religiosas). O PL 122
criminaliza uma invectiva genérica, não personalizada, já que extensiva a
“coletividades”, punida com penas de prisão de dois a sete anos. Cria-se um
delito de opinião/expressão genérico.
Mais: “I –
impedir ou obstar o acesso de pessoa, devidamente habilitada, a cargo ou
emprego público, ou obstar sua promoção funcional;” Imaginemos
na vida real: nomeação para um cargo
comissionado de livre provimento. Um gestor público pretere um postulante
homossexual por considerar outra pessoa mais competente ou apropriada para
aquele DAS. Inconformado, o não nomeado o acusa na justiça criminal de
“obstar seu acesso” ao cobiçado cargo por ser gay. O gestor em questão fica exposto à pena de
prisão. Provavelmente não terminará recluso mas sua vida
nos próximos anos vai virar um inferno já que o preterido, implacável,
contratou o Dr. Vivaldino Rábula --advogado cheio das manhas e truques e muito
bem relacionado que sabe batalhar uma litigância dessas como ninguém.
Também
encontramos no texto uma previsão de dois a sete anos de prisão para transgressões tipo: “I – ofender a integridade corporal ou a saúde de
outrem;” Como se tipifica “ofender a saúde” ou a “integridade
corporal”? Nosso ordenamento legal define a agressão ou lesão corporal de
forma objetiva, identificável num exame de corpo delito ou o atentado ao pudor.
Como caracterizar precisamente uma “ofensa à saúde” ? Isso presta-se a uma
litigância abusiva mas provavelmente inócua.
Adiante: “Art.
4º Aumenta-se a pena dos crimes previstos nesta lei de um sexto a metade se a
ofensa foi também motivada por raça, cor, etnia, procedência nacional e
religião(...).” Vamos imaginar uma partida Corinthians x Boca Juniors. A fiel com sua habitual delicadeza,
resolve marcar o craque adversário: maricón,
maricón! Alguns milhares de torcedores acabam de se expor a uma pena de
dois a sete anos de cadeia... Logo, a galera passa a
delinquir “agravadamente” pois contra a
“procedência nacional” do jogador: argentino
maricón! A pena se vê agravada de um sexto. Na
sequencia, a torcida reincide atribuindo certa orientação sexual ao árbitro
da partida...
Acaso aplicadas a sério essas
disposições legais engendrariam considerável incremento da população carcerária
brasileira já que, inacreditavelmente, a prisão fechada é a única punição prevista
para esses delitos contemplados. O Artigo 5º explicita: “em nenhuma hipótese as penas
previstas nesta lei serão substituídas por prestações pecuniárias.” Isso num
momento em que a sociedade discute cada vez mais penas alternativas para crimes
sem violência e os presídios encontram-se superlotados.
Concordo em ver agravadas penas previstas no Código Penal por homicídio ou agressão praticadas
contra homossexuais motivadas pelo ódio homofóbico. Deve ser coibida
com severidade qualquer incitação
à violência. Mas apenas casos envolvendo a efetiva prática da violência devem ser punidos com penas de encarceramento. Devem doer no bolso do autor delitos que
acarretem dano moral, inequívoco e
individualizado, como vedação de
ingresso de alguém em estabelecimento, perseguição profissional, bullying
ou demissão abusiva de gays, deficientes, ou religiosos de qualquer
crença por preconceito. Não cabe, no entanto, criminalizar o discurso genérico
contra uma “coletividade” comportamental ou outra.
A
liberdade de expressão não pode se restringir apenas ao discurso “politicamente
correto”. O imbecil, o energúmeno, o preconceituoso tem o direito a se
exprimir --desde que não incite concretamente à violência e ao crime-- e
pontificar suas baboseiras, ressalvado o racismo que difere do preconceito
comportamental. É preciso ter cautela com a radicalização do discurso
“identitário” que engendra uma sociedade
sectária, constituída de tribos raivosas,
mutuamente excludentes, irreconciliáveis. A arma mais eficaz contra a homofobia é a
promoção de uma cultura democrática de tolerância e respeito para com o outro.
A opção sexual é simplesmente um modo de ser e de viver a própria vida. Sua afirmação via coerção legal às convicções religiosas de outrem, por mais
atrasadas e reacionárias que sejam, é contraproducente pois tende a produzir um círculo vicioso.
Esse
circulo vicioso não exclui, no campo político-eleitoral, uma certa emulação
midiática recíproca entre um tipo de ativismo vociferante e o moralismo
repressivo, religioso ou da
extrema-direita troglodita. Uns e outros tacitamente “levantam a bola” para seus desafetos comportamentais junto aos respectivos
eleitorados --no momento com nítida vantagem eleitoreira para os pregadores
homófobos, aclamados heróis nos seus rebanhos ou currais. O clima raivoso dessas
guerras culturais, destilado nas redes sociais, descortina uma sociedade mais intolerante, avessa
ao diálogo, histérica, incapaz de lidar democraticamente com suas diferenças.
Quem disputa a presidência de todos os brasileiros não tem porque correr para dentro desse labirinto.
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