A retirada “unilateral” das tropas israelenses
é coerente com o comportamento de Netanyahu desde o início. Vejam o que sucedeu
na trégua: anunciando o “sequestro” de um dos seus oficiais o exército de
Israel realizou bombardeios indiscriminados
particularmente terríveis em Rafah dentro de uma tática que um de seus
porta-vozes chamou de the Hanibal option
(opção Aníbal) referindo-se ao grande general de Cartago que não deixava pedra sobre
pedra. Trocado em miúdos isso quer dizer que Israel diante de uma captura, para
evitar um novo “caso Gilad Shalit” --o cabo trocado por mais de mil prisioneiros
palestinos-- passou a arrasar tudo no
caminho de uma eventual rota de fuga, inclusive correndo um risco enorme de
matar o próprio prisioneiro caso vivo estivesse.
Rafah
foi bombardeada inclusive sem os sms que
são passados aos moradores de Gaza para sumirem do mapa em poucos minutos pois
vem bomba. Houve um número particularmente elevado de vítimas civis, quase 200,
um quarto crianças, levando o total de crianças mortas em Gaza a perto de 400.
O Hamas visivelmente não sabia bem o que havia ocorrido no terreno. Israel
aproveitou para anular o cessar fogo --que não queria porque se dava num
contexto de uma negociação política envolvendo os EUA e o Egito-- e usou toda sua máquina de propaganda,
histérica, para culpar o Hamas de ter
deliberadamente quebrado a trégua. Percebe-se agora que é incerto sequer que
tenha, de fato, havido, violação proposital
da trégua partindo da direção política do Hamas.
Num combate “assimétrico” com esse com o Hamas
não podendo usar nenhum dispositivo de comunicação eletrônica, com grupos
escondidos dias a fio em túneis. Há diversas facções no próprio Hamas e outros
grupos com o Jihad, os Comitês de
Resistência e os ligados à Al Qaeda. O incidente parece típico do fog of war: a névoa da guerra. Mas
serviu politicamente para Israel e levou o próprio presidente Obama a protestar
contra o “sequestro” e a “violação da trégua”. Aparentemente foi feito de bobo.
Israel
já tinha feito algo parecido logo no início do processo quando manipulou o
sequestro e assassinato, quase imediato dos três adolescentes na Cisjordânia. O
crime abjeto, hoje se sabe, foi praticado por terroristas agindo por conta
própria. Desde o início o Shin Beth, serviço anti-terrorista israelense, sabia que eles
estavam mortos –havia uma chamada por celular durante a qual se ouviram os
disparos e o riso dos assassinos. Mas cultivou-se durante quase duas semanas o
mito de um sequestro em curso como
pretexto para efetuar centenas de prisões, enormes operações e matar nove
palestinos que protestavam na Cisjordânia.
No caso do tenente, agora o exército de Israel
confirma que foi morto no combate junto ao túnel e que a conclusão se deve a
exames de medicina legal com DNA de partes humanas encontradas no local. Não há
explicações maiores mas a conclusão óbvia e macabra foi que o tenente morreu na
explosão provocada por um homem bomba suicida, que partes de seu corpo ficaram
no local e outras foram levadas pelos combatentes do Hamas (ou outro grupo) em
fuga pelo túnel pois há precedentes de troca de restos humanos por
prisioneiros, no caso do Hizbollah libanês, uma troca altamente questionável
realizada na época de Ariel Sharon. Atualmente o Hamas detêm restos de corpos
de dois militares israelenses.
O fato do tenente ter morrido era então
susceptível de se saber desde o início mas o governo de Netanyahu preferiu
promover uma encenação de “sequestro” que constrangeu Obama, humilhou John
Kerry e enganou o próprio público israelense (inclusive a família do militar).
A artimanha começou a virar-se contra
Netanyahu quando a família exigiu que as tropas permanecessem em Gaza até
acha-lo. Ao mesmo tempo a extrema direita –com apoio da maioria da opinião
pública!— pressionava para que o
exército israelense “fosse até o fim”.
Netanyahu que é refém estratégico da direta dos colonos e não acredita nem
um pouco em paz com os palestinos, taticamente, é sensatamente prudente e sabe perfeitamente
que se Israel já perdeu mais de 60 solados ocupando apenas as áreas periféricas
de Gaza para debelar os túneis
--providência que não tem como não ser apoiada-- ocupar a cidade de Gaza com mais de um milhão
de habitantes e caçar o Hamas prédio a prédio e dentro do labirinto subterrâneo
de abrigos provavelmente produziria mais de mil baixas além da morte de dezenas
de milhares de palestinos. Israel ultrapassaria a tênue fronteira entre o crime
de guerra que já praticou em diversas ocasiões ao genocídio, lato senso. Por
isso, junto com as poucas cabeças decidiu mante o foco da operação na destruição
dos túneis.
Agora Israel vai manter uma presença reduzida
em alguns pontos estratégicos e ficará “administrando” os foguetes do Hamas. A
organização sofreu perdas importantes , provavelmente uns 400 a 500 combatentes
dentre o total de 1800 mortos em Gaza. Possui cerca de 10 mil a mais. Isso
inclui milicianos pouco adestrados. Mas podemos seguramente se apostar que
continua com uns dois q três mil combatentes bem treinados e prontos para o
sacrifício. Está longe de ter sido
ferido de morte. Perdeu sua rede de túneis ofensivos para penetrar em Israel
–pode ser que subsista um ou outro—e seu arsenal de foguetes deve ter sido
reduzido em 2/3 dentre os destruídos e disparados quase inutilmente. A eficácia
deles foi militarmente falando foi próxima de zero. Mataram só três civis.
Politicamente conseguiram alguma coisa na medida em provocaram uma breve
interdição do aeroporto de Tel Aviv e mandaram a população israelense se
abrigar com frequência. Israel poderá, se quiser até fazer o que teria sido a
política correta desde o início: limitar-se a abater os foguetes e deixar o
Hamas gasta-los sem promover aqueles
terríveis bombardeios que mataram uma quantidade absurda de mulheres e
crianças. Hamas terá muita dificuldade de repor seu arsenal, agora que o Egito
é governado por um inimigo: o general
Sisi.
O Hamas obteve uma vitória política de curto
prazo ao reverter seu desgaste político dos últimos meses junto ao público palestino
antes da crise, ao enfrentar valentemente um exercito tão poderoso, fazendo a Autoridade Palestina e o presidente
Mahmud Abbas aparecerem como uns “bundões”. Mas, quando a poeira baixar e os
tiros e explosões pararem e os moradores de Gaza e da Cisjordânia começarem a
contemplar mais friamente preço absurdo pago pela população de Gaza por causa
da completa indiferença do Hamas em relação ao seu sofrimento, ao disparar seus foguetes de dentro do tecido
urbano mais denso do mundo sem se importar com as consequências, também o Hamas
também terá um preço político a pagar.
O momento será então novamente favorável à retomada do processo de paz. Mas enquanto Netanyahu e seus aliados da
extrema-direita permanecerem no governo de Israel e com uma maioria no Knesset,
isso não acontecerá. O tempo a seguir
não será mais de espera para o macabro próximo round. O maior erro desse brilhante
tático mas deplorável estrategista –e profundo mau caráter-- que é Bibi
Netanyahu é acreditar que o tempo joga a seu favor. Os fatos da Líbia ao Iraque
não apontam nesse sentido e o tempo para um acordo com a parte moderada do
mundo árabe, onde se incluem os palestinos, está se esgotando ao mesmo tempo em
que se esgotam, no terrento, as chances para
a solução de dois estados vivendo em paz lado a lado.
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