O maior problema ecourbanístico do sul do planeta é a cidade informal das favelas, loteamentos clandestinos e similares, com seus variados nomes: villas miséria, poblaciones, chabolas, townships, shanty towns, bidonvilles, casbah. Nas grandes cidades latino-americanas, asiáticas, africanas, árabes, e em partes crescentes da Europa do Leste, proporções que variam de 20% a mais de 80% das edificações são ilegais, construídas sem licença e fora das leis urbanísticas, em terrenos que raramente pertencem aos ocupantes dessas benfeitorias. Foi o impacto da intensa urbanização dos últimos 40 anos, confrontada com a inadequação das regulamentações edilícias e os anacronismos da estrutura fundiária urbana.
Em todas as cidades brasileiras, em maior ou menor escala, encontra- mos também uma cidade informal, composta de favelas, vilas, ocupações e mocambos, localizados, de modo geral, em morros, áreas de baixadas e margens de canais ou rios. A pobreza e a exclusão social são, sem dúvida alguma, desequilíbrios que comprometem a existência de um ecossistema urbano sadio. Porém, ainda que miséria esteja habitualmente presente na
cidade informal, nem sempre esta será completamente miserável. É um erro, por exemplo, ver as favelas cariocas como meros focos de miséria e estagnação. Em razão de sua própria configuração, alta densidade, intensa oportunidade de trocas e proximidade física em relação à cidade formal, algumas favelas viveram, nos últimos 30 anos, um processo contínuo de progresso e de mobilidade social.
Na verdade, a vida nessas comunidades está envolta em paradoxos e contradições. Há certa mobilidade social que dá acesso a novos bens de consumo e espaços de moradia mais amplos (em geral, crescimento verti- cal das habitações). Dentro da própria comunidade, opera-se um desdobra- mento social com uma pirâmide local de “ricos”, classe média e pobres. Ao lado disso, persistem a precariedade no saneamento básico e na coleta de lixo; e, em muitos casos, os riscos de desabamento ou inundação.
É preciso se estabelecer políticas públicas que levem sua integração à cidade formal, à transformação da favela em bairro, não obstante as condi- ções urbanísticas originais, o que implica urbanizá-las, melhorar sua acessi- bilidade, legalizar a posse dos terrenos e das edificações – fazendo os novos proprietários pagarem IPTU, ainda que reduzido –, e manter a presença constante do poder público. Isso exclui apenas uma fração relativamente reduzida de edificações em área de risco, irreparavelmente insalubres ou situadas sobre logradouros públicos, que devem ser removidas. Implica, ainda, construir ecolimites, fronteiras físicas claramente demarcadas entre a comunidade e o seu entorno natural. Naturalmente, tais limites físicos, sejam marcos, grades, cercas ou mesmo muros, nada garantem se não resul- tarem de um acordo de autorregulação do crescimento pactuado com a co- munidade, o que é muitas vezes viabilizado pelo subsídio a projetos gerado- res de renda, como mutirões remunerados de reflorestamento, lixo ou sane- amento, a partir dos quais o poder local passa a ter mecanismos de pressão.
Nesse processo de integração, a parte mais complicada é a criação de regras específicas para construção legal nessas comunidades, é dotá-las de mecanismos de penalização pelo seu descumprimento. Autuar e cobrar multa de quem vive na informalidade não é factível. A capacidade de o Judiciário punir pequenos delitos é limitada. Por razões diferentes, a legis- lação ambiental e urbanística tem dificuldades de ser aplicada contra os muito ricos e os muito pobres. Por outro lado, a existência de normas de- masiado rígidas, concebidas para uma cidade ideal que não existe, a não ser na imaginação do legislador, podem ser um poderoso estímulo à informali- dade. O peruano Eduardo Neira Alva sustentava:
A persistência de normas pouco realistas acarreta um modelo de expansão urbana de densidades habitacionais muito baixas sobre terrenos que se in- corporam à área construída sem planificação alguma e a custos sociais cada vez maiores, o que dá ensejo à invasão do espaço público e à crescente segre- gação da cidade legal. Esse modelo, irreal para a maioria da população, é o que ainda prevalece, conferindo às metrópoles latino-americanas um caráter especial e contraditório, em face de normas mais estritas de qualidade ambiental.
Um sistema de licenciamento para favelas, com a participação da co- munidade organizada, normatizando quem pode construir o quê, de que maneira, onde, quais as condições mínimas de segurança e conforto am- biental, é o grande desafio para que uma cidade saia da informalidade.
São regras extremamente simplificadas, limitando-se a quatro pontos: 1) o ecolimite, que marca a fronteira da comunidade com a área verde por meio de cercas ou marcos, é um espaço simbólico, mais do que um obs- táculo físico, pois nenhum muro servirá, podendo até se transformar em parede, se não houver a pactuação e seu enforcement (em inglês, aplicação prática da lei); 2) o limite de altura tem que ser realista e levar em conta o que já existe em volta; 3) deve-se ter em mente as condições de salubrida- de – como insolação, ventilação – e a segurança estrutural; 4) o respeito ao espaço público na comunidade é fundamental.
Ao definirmos as regras de construção legal, estaremos desencadeando o mecanismo econômico que, junto com os demais já expostos, levará ao desaparecimento da favela enquanto tal, consagrando sua transformação em bairro. As favelas situadas nas proximidades das áreas de classe média já oferecem atrativos consideráveis para o ingresso do setor formal da cons- trução civil. Há quem objete que a construção civil formal não tem como competir com os pedreiros e mestres de obras que se encarregam das atuais construções ou acréscimos de lajes nas favelas. Penso, pelo contrário, que não se trata de competir, mas de absorver. O setor informal da construção tem limitações consideráveis. Embora se beneficie da economia ultraliberal que existe na favela – que pode pagar salários abaixo do mínimo (nem sempre consegue) e não tem encargos trabalhistas ou previdenciários –, esse setor tem dificuldades. Não consegue acesso ao crédito; paga muito caro pelo material de construção, pois não trabalha em escala; usa quantidades exageradas de concreto – ao contrário do que muitos supõem, suas cons- truções são estruturalmente muito seguras – e não tem acesso à tecnologia. Se puderem construir dentro da legalidade, e estimulados por um processo de licenciamento extremamente simplificado, os construtores formais tenderão a absorver os construtores informais. Além da criação de regras, o principal problema é a regularização fundiária dos terrenos, para que haja garantias ao financiamento.
Sem a extensão da lei, da autoridade, da presença dos serviços públicos, a simples urbanização física e a maior acessibilidade não conseguirão re- verter a situação, correndo-se ainda o risco de estimular um maior cresci- mento desordenado sobre áreas naturais próximas. É preciso se regularizar a cidade informal, não apenas do ponto de vista urbanístico, mas também do fundiário. Na concepção de outro peruano, Hernando de Soto, ela incor- porará à economia formal essas
[...] casas construídas em terras cujos direitos de propriedade não estão ade- quadamente registrados (que) não podem se transformar de pronto em capi- tal, não podem ser trocados fora dos estreitos círculos locais, onde as pessoas se conhecem e confiam umas nas outras, nem servir como garantia a emprés- timos e participação em investimentos.
De Soto avalia em 6,7 trilhões de dólares (!) o valor de mercado re- primido do conjunto dessas edificações urbanas feitas pelos pobres dos países em desenvolvimento, ao longo dos últimos 40 anos. Na América La- tina, isso corresponderia a 1,2 trilhão. Ele prevê que, incorporadas a um ca- pitalismo legal, e devidamente escrituradas, elas engendrariam uma signi- ficativa redistribuição de renda e dinamização da economia como um todo. Pode-se argumentar que De Soto, ao ver nisso um caminho de acesso ao crédito, superestima as consequências econômicas e o potencial de “capi- talismo popular” que poderá ser liberado por esse processo no Brasil, onde o acesso ao crédito bancário esbarra nas altíssimas taxas de juros – que já criaram uma cultura refratária a tomar ou conceder empréstimos – e a casa própria, quando único imóvel da família, não pode ser alienada por hipoteca.
De qualquer maneira, trazer a cidade informal para a esfera da lega- lidade tem vantagens econômicas evidentes, não só para os pobres como para o conjunto da sociedade, sempre que se consiga criar mecanismos de inibição e repressão que garantam que a regularização de favelas e lotea- mentos – e novas normas edilícias, mais realistas – não servirá para esti- mular mais ocupações, parcelamentos e construções irregulares, com suas decorrências de agressão ambiental. Por isso, deve existir um componente repressivo, eficaz e fulminante, para complementar essas novas políticas de legalização da informalidade, coibindo, no nascedouro, subsequentes processos de favelização. A combinação de dois movimentos aparentemente contraditórios não é simples, mas é o caminho para uma cidade una e integrada.
Como percebemos, o problema está não apenas na miséria em si, mas também na exclusão, na ausência de vínculos com a cidade formal e com o estado de direito. Por isso, a primeira questão relativa a um ecourbanismo no Brasil é fazer com que tais espaços marcados pela informalidade, hoje situados à margem, sejam integrados, trazidos para dentro. A resposta pode variar em função do tipo de intervenção específica demandada – saneamen- to, lixo, geração de renda, assistência sanitária, urbanização –, mas sempre se situará dentro de algum tipo de estratégia de integração, de apoio do po- der público, de acesso a graus superiores de cidadania, com novos direitos e, também, novas obrigações e responsabilidades.
Felizmente, a relação íntima entre questão social e questão ambiental não ocorre apenas pelo lado negativo. Podemos afirmá-la também pelo inverso: existe a possibilidade de o social e o ambiental se articularem num ciclo virtuoso. Numa era em que o desemprego é o grande flagelo da econo- mia globalizada, e na qual o segmento mais vulnerável é, justamente, o da mão de obra pouco qualificada, a preservação e a recuperação ambiental são dois campos que podem gerar empregos ou, pelo menos, constituir atividades geradoras de renda que beneficiem os excluídos através de atividades subsidiadas. A coleta comunitária e a reciclagem de lixo, o reflorestamento, o saneamento, a proteção de áreas verdes, a arborização pública, a conservação de energia, a educação ambiental, a animação cultural com conteúdo ecológico, entre outras atividades, podem ajudar a desencadear esse ciclo virtuoso, em que se combata desemprego com atividades geradoras de ren- da e, simultaneamente, se promova uma melhor qualidade de vida.
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