17/09/2017

Entropia brasileira

A crise econômica, social, politico institucional e de segurança do Brasil prossegue a todo vapor. A anunciada melhoria dos indicadores macroeconômicos só me suscita um sorriso amargo. Quanto tempo tardará para termos um mínimo de alívio social? O tipo de recuperação que faz vibrar bolsa de valores não é necessariamente aquela que irá abrir num novo ciclo de desenvolvimento socialmente inclusivo e sustentável.

 Hoje encerra-se o proconsulado (o cargo no Império Romano) de Rodrigo Janot e suas flechadas a, literalmente, torto e direito. Me recordo dele de meu tempo de deputado durante o primeiro governo Dilma. Parecia perfeitamente alinhado com  o Planalto e o PT. Quando fui obrigado a sair do PV, em outubro de 2013, ele me incluiu numa lista de parlamentares  cujos mandatos seu MP pediu ao TSE para cassar por “infidelidade partidária”. 

 Perseguido pelo presidente vitalício do partido que fundei, presidi oito anos e no qual permaneci 27, quem decidiu negar-me a legenda em 2014 –naquele ano anterior eu ainda pensava me recandidatar--  fui obrigado a deixar o PV e me filiei, junto com a Marina Silva, no PSB. Na época aquele pedido de cassação me pareceu  insuflado  um segmento ativista do PT, no MP,  como parte do jogo contra ela. Me incluíram na lista dos “infiéis” embora meu caso tivesse sido amplamente noticiado. As pessoas sabiam o quanto fora doloroso para mim deixar o PV.

 Depois da audiência com o juiz eleitoral, no corredor,  perguntei ao representante do Janot por que a senadora Katia Abreu, que também trocara de partido,  não fora incluída na lista que dos que MP queria cassar. Me explicou que a infidelidade não se aplicava aos senadores, só aos eleitos “proporcionais, vereadores e deputados”. Como assim? Isso não estava na Lei. “É a nossa interpretação”, explicou. Aquilo não deu em nada, claro, o TSE me deu ganho da causa. Mas produziu algum noticiário de mídia negativo minha suposta “infidelidade partidária” com direito a foto... Foi minha experiência pessoal com o proconsul Janot e suas flechas de bambu.

PASSADO A LIMPO?

Uma narrativa possível é a do Brasil sendo “passado a limpo”: intrépidos promotores, juízes e ousado jornalismo, contraponto dos poderosos, promovem devassa no establishment político e empresarial. Apesar dos traumas e erros menores, aqui e ali, emergirá um Brasil melhor, em algum momento futuro. Corresponde aos sonhos que tantos de nós acalentávamos, inconformados com a podridão política brasileira. 

Mas como emergirá esse novo Brasil ainda não se vislumbra senão como artigo de fé. O que se descortina visível é a terrível crise econômica, um sobressalto permanente avesso a qualquer estabilização, um  horizonte carregado de maus agouros. A “passagem a limpo” do Brasil certamente implica no expurgo de esquemas, práticas e políticos corruptos e no fim de sua instrumentalização do aparelho de estado. No entanto, por si só, isso não garante futuras representações ou tempos melhores.  

A cura messiânica, “neo-tenentista” --hoje das togas não dos quartéis--   periga seguir a clássica trajetória das revoluções: inicio promissor, exultante, catártico, depois, terror e, ao fim,  o Thermidor –a restauração—ou a nova ordem, amiúde pior. Trata-se de uma revolução pós-moderna, sem barricadas, assaltos ao palácio de Inverno e outros que tais, feita por dentro das instituições persecutórias e de parte de um judiciário, cumprindo seu papel mas tomando certas liberdades com as garantias individuais e o estado de direito, pelo uso generalizado de instrumentos que demandariam certa parcimônia como as expeditas e intermináveis prisões provisórias e o recurso intensivo às delações, umas mas mais premiadas que outras...

 Dirão: sem isso a Lava Jato não teria desmantelado os megaesquemas de corrupção incrustrados nas empresas estatais, não teria desmascarado e punido ladravazes notórios, não teria frustrado uma estratégia de perpetuação no poder, análoga àquela do PRI mexicano, no século XX. 

 Ninguém pode negar esse mérito à Lava Jato. As revoluções sempre irrompem por causas justificadas e, nos seus primórdios, produzem punições justas e necessárias, conquanto drásticas. Os problemas chegam, mais adiante, quando o poder sobe à cabeça dos revolucionários, quando é preciso agradar mais e mais um público tomado de amores pela guilhotina. Quando é preciso compensar essa frustrante vida quotidiana que só piora mas pode ser distraída pelo espetáculo persecutório que também passa a servir às inevitáveis disputas de poder. Quando se engendra uma dinâmica fora de controle, e se descobre ali, entre tubos e provetas, o vulto do Frankenstein. 

Um momento, direis, ao judiciário, MP e à grande mídia, audazes protagonistas dessa revolução, absolutamente não cabe solucionar os problemas do Brasil apenas “rigorosamente cumprir a Lei”! Salta aos olhos, porém, que esse rigor é relativo, seus critérios elásticos e, por vezes, escancaradamente políticos. Alguns dispositivos legais são assim “esticados” ao máximo.  Outros, totalmente ignorados, como o desmoralizado segredo de justiça, exemplo vivo daquela Lei brasileira que “não pegou”, vulgarizando os vazamentos e a divulgação de conversas “grampeadas”, inclusive de pessoas sem relação alguma aos fatos investigados.

 Do lado midiático, onde se dá a instantânea, inapelável e irreversível condenação à execração pública, à noite na TV, a atualidade tornou-se quase monotemática com 90% do noticiário dedicado às mesmas delações, malas de dinheiro, grampos e listas de políticos, repetidas ad naseum, em tom militante. Nada mais acontece de interesse no Brasil e no mundo, já se sabe. Parte da classe média se eletriza com esse clima. Nas redes sociais rebimbam as duas tribos viscerais:  coxinhas versus mortadelas

O NÃO DIALOGO

São duas narrativas não dialogantes, sectárias, excludentes. Qual novo universo político resultará de tudo isso? Possivelmente haverá, em 2018, alguma renovação naqueles 20% eleitos pela classe média urbana. Tenderá mais à direita e, em menor escala, à extrema esquerda. Os 80% restantes eleitores --que a muito tempo dão de barato que “os políticos são todos ladrões”--   pragmáticos, continuarão a dar seu voto de clientela, assistencialista e/ou religioso. 

No entanto, nem os atuais políticos são extraterrestres (afinal alguém os elegeu), nem a corrupção na sociedade brasileira é seu exclusivo apanágio. Refletem algo que a sociedade não gosta de ver refletido. Se fossem agora apartados por um brado retumbante de ‘qué se vayam todos!’,   quais seriam seus sucedâneos? Um “baixo clero” que não aparece na mídia, cujas campanhas não receberam contribuição das grandes empresas investigadas mas de negócios locais, frequentemente, da economia informal e, eventualmente, da criminosa violenta: grilagem, bicho, milícias, tráfico, etc. Vácuo não haverá mas progresso ninguém garante.

  A tábula rasa não costuma produzir esse progresso. Outros países que melhoraram sua qualidade da representação, governabilidade e governança, o fizeram pela progressiva decantação institucional, política, educacional e cultural que levou um certo tempo.   Mesmo saindo de grandes traumas, eram sociedades com autoestima, confiança mútua e otimismo num viés de alta. Seu progresso institucional e econômico não resultou do mero desmantelamento, muito menos de uma auto-deprecação masoquista, de um “complexo de vira-latas”. 

 Somos um país em brutal recessão, sem perspectiva de rápida recuperação com mínimo efeito social com devastação ambiental crescente, violência fora de controle, facções criminosas mais fortes que nunca com grande quantidade de armamento de guerra circulando em comunidades e periferias, convêm calcular lucidamente os próximos passos e saber bem o que se quer da vida. 

O Brasil é um avião, da torre acabam de dar voz de prisão ao piloto, os passageiros, coxinhas e mortadelas, trocam sopapos e pernadas na cabine, qual cinematográfica briga de saloon. A aeronave penetra em intensa zona de turbulência. Apertem os cintos...

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