10/10/2017

Políticas da raiva


 
Acautelai vos contra as políticas da raiva. O clima lhes é propício. Burra, a esquerda se pulverizou em tribos mil e se ilude poder voltar ao poder com velas infladas pelo vento da raiva. A grande mídia espalha raiva. Em parte pela guerra da audiência, em parte pelo sentimento de onipotência que dá aos seus editores serem a ponta e lança do “indignismo” de uma classe média desnorteada. Não aprecio muito o Neil Ferguson pelo seu republicanismo (tradicional, não trumpiano)  mas no último Foreign Affairs ele acerta na mosca ao explicar, matematicamente,  como o fenômeno das redes sociais trouxe no seu DNA uma pulverização sectária da sociedade. Se no Brasil a grande mídia tradicional se faz panfletário-inquisitória,  as redes sociais são grande estande de tiro. Já não somos mais capazes de amplos denominadores comuns. Já não importa buscar estratégias reais, plurais, plausíveis para tentar sair da terrível crise econômica, social e ambiental. Importa apenas afirmar-se: agrido portanto existo. 

 Não há mais hipótese de alianças amplas, modernas buscando soluções que estejam ao alcance  do Brasil com todas suas imensas vantagens para se afirmar na geopolítica do século XXI, efetuando sua transição para uma sociedade inclusiva e ecologicamente viável. O momento é francamente regressivo. É hora das tribos, em busca  da afirmação fanatizada da própria identidade. "Mortadelas" ou "Coxinhas" são intransigentes, irancudas, primárias. 

 Não  interessa mais  dialogar com o diferente, encontrar pontos de entendimento,  compreender suas inquietações, medos, paranoias para fazer avançar agendas que atendam a uns sendo aceitáveis pelos outros para fazer avançar uma agenda política de maiorias.  Não há espaço comum. Só antagonismos sofregamente entre minorias  cultivados por colecionadores de raivas.

Num contexto assim não há nada surpreendente no ressurgimento de um discurso pro golpismo militar clássico paralelo ao de um neofascismo trumpiano. A esquerda, abobada, em vez de consolidar os avanços da história das últimas décadas, passou os últimos 13 anos soprando nas brasas então quase apagadas da extrema direita, tentando reviver antigas batalhas como foi aquela demanda estúpida de revisão da anistia. Os novos avanços também foram feitos de forma a serem os mais antagonistas e menos dialogantes  possíveis. 

 Por exemplo: a maior parte do conservadorismo religioso seria até capaz de aceitar uma agenda gay de não-discriminação entendendo que, numa democracia,  todos tem direitos a ser o que são sem sofrer  perseguições ou violências. Deveria ser uma questão de direitos civis  não de educação sexual nas escolas com a imposição de um discurso “politicamente correto” ou uma tentativa de criminalizar  alguma objeção retrógrada porém legítima numa sociedade plural onde a Constituição protege não apenas o politicamente correto. 

A extrema-direita, que o governo do PT foi pródigo em ressuscitar, hoje se define menos por algum discurso direitista bem construído, do que por um sentimento visceral anti-esquerda. Reacionário no lato senso.

  Nossa esquerda não conseguiu apreender o que os vietnamitas que venceram os EUA, nos anos 70,   ensinavam: “ganhar todos que podem ser ganhos, tornar neutros aqueles que não consigamos ganhar, isolar o inimigo o principal”. Aqui foi o contrário: irritar o maior número de pessoas possível, criar novas divergências, empurrar para longe possíveis antigos ou novos aliados, cultivar a soberba, perpetuar-se no poder a todo custo –mesmo ao preço da hiper corrupção--   e alargar ao máximo o espectro dos que não os suportam.  Resultado: a ressureição de uma direita à sua imagem e semelhança só que de sinal contrário.

 O neofascismo é negócio na essência meio antibrasileiro mas tem lá sua clientela jovem, pobre ou de classe média que não convêm subestimar nesses tempos de crise e desorientação.  Se Trump pôde triunfar nos EUA,  apenas um sistema eleitoral mais sensato –o nosso, de eleição direta em dois turnos!—nos deixa em  situação de risco um pouquinho menor. Num segundo turno,  seria algo difícil uma figura grotesca e extremista se impor. Mas não impossível... De qualquer modo mais graves são os danos colaterais e a incorporação de atitudes fascistóides no poder institucional. 

 Beleza, acabou a impunidade e um bom número de grandes figuras políticas e empresariais chapa branca estão vendo o sol nascer quadrado. Isso só trará um melhor padrão na vida pública se vier acompanhado de uma reconstrução da política brasileira em algum patamar mais limpo que demanda um misto de renovação e reciclagem que não se avista no horizonte.  O plantel de candidatos a presidente é simplesmente lamentável. Assustador pensar num segundo turno Lula x Bolsonaro. 

 A reforma política fracassou, manteve o voto jabuticaba que vai conservar uma representação parlamentar fruto do clientelismo/assistencialismo e a emergência do baixo clero trará consigo uma maior influência política do narcotráfico, milícias e outras modalidades de criminalidade violenta.


 Aos que imaginam que uma solução militar ou judicial-militar é um caminho, convêm lembrar que o Brasil não é o de 1964 quando o estado mal que bem possuía o monopólio sobre o armamento de guerra. As armas do conjunto dos grupos que, quatro anos depois,  passaram a combater o regime, todas somadas, são hoje superadas de longe pelo mais modesto arsenal da menor favela dominada pelo narcovarejo no Rio. Há uma quantidade absurda de armamento circulando na nas comunidades e periferias. Uma quebra da ordem institucional produziria não uma ditadura militar mas centenas de ditaduras militares locais.

 Hoje o grande risco não é mais um regime a la 64 mas a síndrome dos estados falidos. Por isso vale a pena ter cuidado, respirar fundo e acreditar na velha frase de Churchill de que a democracia é o pior dos regimes do exceção de todos outros.  

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