Fui convidado pela Convenção do Clima da ONU, a UNFCCC, para “facilitar” (de certa forma presidir) um encontro de especialistas sobre “O valor social e econômico do carbono”, discussão aberta pelo texto da decisão da Conferência do Clima de Paris, a COP21. O debate, realizado em Bonn na última sexta-feira, foi uma boa surpresa, porque era uma oportunidade para lidar com o maior obstáculo para a transição rumo às economias de baixo carbono/neutras em carbono, que é o seu financiamento.
Na UNFCCC essa questão é tradicionalmente tratada pelo Comitê Permanente sobre Finanças, que é uma instância disfuncional, polarizada por uma velha discussão “norte-sul” totalmente sem saída. É movida pela ilusão que a transição global possa ser financiada pela “responsabilidade histórica” ou seja, que os governos dos países desenvolvidos o farão. É um dialogo de surdos.
A discussão em geral gira em torno dos US$ 100 bilhões/ano que teoricamente os países “do norte” deverão prover a partir de 2020, metade para mitigação e a outra para adaptação. Até agora só se materializaram US$ 10 bilhões, e outros US$ 60 bilhões estão “apalavrados” (em termos absolutos, não anuais). Esses governos simplesmente não possuem esses recursos nem as condições políticas internas para aportá-los. Poderiam, no entanto, oferecer parte deles e garantias necessárias para mobilizar o resto no setor financeiro privado, mas a polarização de “tudo ou nada” no comitê permanente não ajuda . Esse tema foi um dos poucos a não avançar quase nada em Paris.
Mesmo que se materializassem em dinheiro líquido, esses US$ 100 ou US$ 120 bilhões anuais ficariam ridiculamente aquém do que é preciso para financiar a transição, cujo custo anda mais próximo dos US$ 3 trilhões/ano. Incluindo a adaptação, pode chegar a US$ 5 trilhões. De onde virá toda essa dinheirama? Os governos, todos, estão na ou perto da lona. Todos têm déficits e forte endividamento, estamos muito longe da era de Bretton Woods quando os EUA tinham disponibilidade financeira para um Plano Marshall, na Europa devastada pela II Guerra e havia uma outra tolerância do sistema para grandes déficits, prevalecendo uma abordagem keynesiana.
Hoje onde está a grana do mundo? No sistema financeiro global: cerca de US$ 220 trilhões, quase todos aprisionados numa “financialização” especulativa que tornou-se a marca do capitalismo contemporâneo. Há dias, até a conservadora revista Time publicou uma reportagem de capa condenando esse onanismo financeiro, no qual o capital manipula sua auto-multiplicação quase sem passar pela economia produtiva. A pergunta dos muitos trilhões é como atrair uma parte que seja desses capitais, travados na especulação, de volta ao sistema produtivo e para uma transição rumo às economias de baixo carbono/carbono neutras. Aqui aparece com reveladora clareza que os caminhos para tirar a economia mundial de sua estagnação e para enfrentar as mudanças climáticas – o principal problema da humanidade, porque agrava todos os demais — são bastante convergentes.
Por inspiração da proposta brasileira, que ajudamos a construir e que redundou no parágrafo 108 da Decisão de Paris, 196 nações reconheceram o “valor social e econômico” das ações de mitigação. Isso estabelece que a redução ou a remoção de carbono da atmosfera possui uma valor econômico intrínseco, o que abre a trilha para uma verdadeira revolução na economia e na finança mundiais. Indica um caminho no qual o financiamento maciço da transição para economias de baixo carbono será lastreado por esse novo valor.
Valor, na história da humanidade, sempre foi criado com base numa necessidade histórica premente e, depois, seguido dos mecanismos simbólicos de representação desse valor no caminho, de sua precificação: ouro, moeda, dinheiro de papel, dinheiro eletrônico etc. Assim, considerando-se a necessidade histórica contemporânea, suscitada pela ameaça premente das mudanças climáticas, não será surpresa se esse reconhecimento de valor redundar futuramente numa nova moeda de reserva. Mas deixemos essa discussão para mais adiante.
O encontro de especialistas que presidi em Bonn não foi tão longe; na verdade, não chegou nem a focar bem no parágrafo 108 e suas implicações práticas. A seleção dos palestrantes e dos subtemas acabou colocando na mesa diversos mecanismos diferentes: mercados de carbono, precificação “real” e taxação do carbono, fim dos subsídios a combustíveis fósseis e precificação “positiva”. São todos instrumentos que fazem parte de uma “caixa de ferramentas”; cada um serve a um determinado propósito. Pode-se dizer que sejam complementares.
Os “mercados” dão mais eficiência e agilidade para alcançar as metas já determinadas de mitigação. São um instrumento limitado. Útil, desde que evitados problemas como a “dupla contagem” e recuperada a desvalorização ocorrida por causa de excessos especulativos. Há dúvidas sobre como funcionarão na era pós-Paris, quando todos países têm sua meta (a chamada INDC) a cumprir. Haverá margem para negociar créditos de carbono? Não sabemos ainda. A precificação “real”, a atribuição de um preço à tonelada de carbono, é extremamente útil e necessária por parte de países e empresas, e se relaciona com as possibilidades de taxação do carbono e à incorporação das chamadas “externalidades” aos preços dos produtos e serviços carbono-intensivos. Mas sua dinâmica, assim como a da necessária supressão de subsídios, é eminentemente nacional. Cada país vai ter que tratar da sua, pois os sistemas de taxação/subsídios são nacionais e, eventualmente, subnacionais.
Para a precificação positiva, a maior importância do encontro de Bonn foi ele ter sido realizado. Sua proponente foi a embaixadora francesa Laurence Tubiana, que está convertendo-se numa forte defensora da causa. O “secretariado” (a burocracia da UNFCCC) resistiu um pouco, pediram até para tirar um slide da minha apresentação porque “avançava demasiado”, mas no final o tema acabou legitimado no ONU e veio para ficar.
Em junho teremos um novo seminário do Rio de Janeiro; em setembro, um grande colóquio internacional em Londres, e certamente haverá um ou mais eventos paralelos sobre o tema na COP22, em Marrakesh. No entanto, a construção do mecanismo de financiamento que irá operacionalizar o conceito do parágrafo 108 será construído mais fora do contexto da ONU, possivelmente sobre o guarda chuva do G20 e de um “Clube do Clima” formado por alguns governos, bancos de investimentos, bancos centrais e organismos multilaterais e financeiros pioneiros que se disponham a garantir e começar a operar com certificados de redução de carbono, esse embrião de uma futura “moeda do clima”. Sejamos ambiciosos. Precisamos ser.
Alfredo Sirkis é jornalista, escritor e diretor-executivo do Centro Brasil no Clima
Sirkis,é possível afirmar que as mudanças climáticas advindas da grande quantidade de carbono possam alterar a qualidade dos produtos na indústria?
ResponderExcluirBom dia Senhor Sirkis,venho acompanhando seus blogue faz um tempo, sua forma de olhar as dificuldades na sustentabilidade e traços firmes para medidas contra as mudanças climáticas , serão muito bem vindas na Semana de Biologia da minha instituição de ensino
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