10/02/2014

O estado de entropia

 A notícia da morte cerebral do cinegrafista Santiago Andrade da TV Bandeirantes, além da tragédia pessoal, deve por fim a relativa condescendência com que vêm sendo tratados o Black Block, similares e a franja extremada que desviou e depois desmobilizou o movimento de junho de 2013. Minha geração se formou enfrentando e temendo regimes autoritários:  a ditadura militar de direita e depois os regimes stalinistas do chamado “socialismo real”. Hoje em dia por mais que haja quem tema que a persistência da atual aliança de governo do PT com os caciques da política tradicional possa levar ao chavismo preocupa mais outro fenômeno: a entropia. Uma sociedade que entra em franco regime de autofagia. Não é um fenômeno tipicamente brasileiro, nem é propriamente um fenômeno moderno --muito menos pós moderno. Já o velho Testamento trazia a história da torre de Babel. Os hispanos tem um nome mourisco para isso: algarrávia.

 Isso me ocorre a pretexto dos últimos incidentes de rua envolvendo manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, com Black Block , extrema esquerda, polícia e mídia num imbróglio barulhento e explosivo. Uma manifestação pequena --como vem sendo desde que a franja violenta espantou a grande maioria que desceu às ruas aos milhares em junho do ano passado--  para protestar entre outras coisas pela má qualidade dos serviços públicos.  Essa pode não ter sido a única causa da debandada daquela mobilização massiva, policêntrica e difusa mas certamente contribuiu bastante.

  Frente ao anunciado do aumento para 3 reais dos ônibus cariocas foi marcada uma manifestação na Central à qual acorreram algumas poucas centenas de pessoas inclusive os indefectíveis porradeiros do Black Block e similares. Primeiro se dedicaram a perturbar o funcionamento dos trens da Supervia que nada tem a ver com o cartel das empresas de ônibus, multiplicando incidentes junto às catracas. Pergunta pertinente: porque o usuário de trem, já tão mal servido, vai ter que pagar pelo aumento da Fetranspor?

  Segundo momento, em frente à estação, na hora que começou a inevitável pancadaria, um desses “militantes” entregou uma bomba de fabricação caseira (ou um “morteiro”) para outro e esse jogou-a (ou disparou-a,  ainda não entendi direito)  sobre um cinegrafista da Band. O petardo explodiu junto a sua cabeça ferindo-o fatalmente.

 Isso certamente não ajudará os defensores do “passe livre” a estabelecerem a viabilidade ou sequer a justeza de suas reivindicações. A gratuidade dos transportes públicos não existe. Paga  o usuário ou paga o contribuinte. Usuários de classe alta e média devem pagar. Sistemas de vale-transporte pelas empresas devem garantir o percurso casa-trabalho dos trabalhadores  do setor formal da economia e já há numerosas gratuidades que deveriam inclusive passar por um filtro social (estudante rico deveria pagar, sim!).

 Na minha modesta opinião as reivindicações para serem factíveis e justas deveriam focar nos “bilhetes únicos” e de integração. Deveriam ser prorrogados para pelo menos três horas e instituídas diversas modalidades e formatos  concebidos para atender  usuários de baixa renda em uma variedade de situações. É justo que haja subsídio público para esse componente gerando uma tarifa social que em alguns casos poderia ser muito barata, sem chegar, no entanto à gratuidade por ser deseducativa.

 Isso, em tese, deveria se aplicar até as gratuidades já consagradas, mas causaria demasiado conflito querer introduzi-lo agora. “Passe livre” lembra “boca livre”, falseia a percepção em relação ao serviço público.  Cinquenta centavos, que seja,  para os mais pobres é mais correto que a balela demagógica de uma gratuidade que não  o é.   

 Qual a tarifa justa? O fundamental nessa discussão é a transparência: a planilha de custos tem que ser confiável e estar acessível para qualquer um e o aumento seguir de fato o índice inflacionário com o eventual subsídio público agindo como elemento regulador. É preciso buscar um ponto de equilíbrio entre de um lado o  lucro abusivo, exorbitante,  das empresas e, do outro,  a inviabilização econômica do  serviço demandando níveis de subsídio impagáveis para o poder público. Com as novas ferramentas tecnológicas disponíveis é potencialmente viável controlar com precisão as informações pertinentes.

  Cabe uma discussão sobre qualidade do serviço, particularmente a necessidade de uma universalização do ar condicionado e a  redução de emissões poluentes com a adoção de combustíveis que a promovam. Há uma questão absolutamente vital que é a qualidade do serviços, sobretudo no tocante ao comportamento ao volante dos motoristas que cometem diariamente barbaridades no trânsito carioca.  É preciso instituir uma instância de concertação permanente entre usuários, empresas e prefeitura para tratar dessas questões com transparência e tolerância.

 Achar que se pode melhorar a mobilidade urbana com reivindicações demagógicas e com violência é um tiro no pé a não ser que o propósito seja justamente esse: promover a  entropia. Não foi essa a motivação que levou às ruas as multidões de junho de 2013  que terminaram desmobiliadas por essa  minoria violenta que usa o protesto legítimo apenas como “octágono” para exercitar sua fúria paranoica e, agora,  assassina.

Muita calma nessa hora.

 Relance


 A tragédia  com o cinegrafista da Band não foi a primeira agressão à imprensa por parte dos Black Blocks e similares # O  noticiário de TV e de jornal do sistema Globo tentando estabelecer uma ligação dos  envolvidos com o dirigente do PSOL Marcelo Freixo pareceu uma certa  “forçação de barra”. Dados muito inconsistentes e disse-que-disse com base em declarações confusas de um estagiário de direito # O deputado  denuncia uma conspiração envolvendo milícias o que também não é tão evidente assim # A ânsia pelo “furo” é a mãe da “barriga” muito embora a manipulação também possa existir. Pode até haver algum grau de promiscuidade entre a extrema esquerda e o pessoal do quebra-quebra (até na Rede já houve problemas assim...) mas a princípio e até prova em contrário parece  injusto o vínculo estabelecido em cima de dados frágeis que a rigor nem justificariam uma matéria # Felizmente, depois, o site de O Globo deu espaço para ele expressar seu ponto de vista# Pesquisas em relação às consequências mais duradouras dos incidentes que se iniciaram nas franjas das manifestações de junho 2013 indicam uma forte guinada para a direita na chamada “maioria silenciosa”. Eu previa esse risco na época # É bom prospectar as coisas para além dos nossos amigos de rede social.

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