Acostumamo-nos a pensar na cidade como criação humana totalmente separada do ambiente natural e a ele imposta. Nossa cultura carrega o mito de um confronto permanente do ser humano com uma natureza hostil: ameaças de tempestades ou estiagens, calor escaldante ou frio de rachar, maremotos, terremotos ou simplesmente mosquitos, forças da natureza contra as quais a civilização se defende com suas armas de concreto, asfalto e eletricidade.Domar a natureza é o primeiro entendimento que temos de um processo de urbanização.
O próprio visual de uma ocupação urbanística do ambiente natural lembra metáforas guerreiras: os tratores, as britadeiras e a dinamite são os tanques, morteiros e metralhadoras dos exércitos da construção civil. Essa relação de conflito e submissão entre a cidade e seu berço natural povoa o senso comum. No entanto, se conseguimos refletir melhor, percebemos que a cidade não constitui algo tão separado da natureza. A criação do homem interage incessantemente, para o bem ou para o mal, com o ambiente natural que a rodeia e a envolve.
No ambiente construído, a natureza não chega a desaparecer; permane- ce à vista e não está apenas nas árvores e áreas verdes das ruas, das praças, dos parques, dos jardins e até mesmo dos terrenos baldios. Está no ar, nas águas dos rios, canais e lagoas; está na fauna, nos insetos e nos microrga- nismos que convivem conosco no ambiente urbano.
As nossas construções são assentadas sobre uma geologia específica, que tem influência sobre tudo o que vai acontecer com elas e os seres humanos que as habitam. Os materiais utilizados nelas (areia, terra, rocha, pedras, mármore, concreto, asfalto) pertenceram ao entorno natural. Sua extração tem certas conse- quências, da mesma forma que o modo como o homem os utiliza, dando forma aos projetos arquitetônicos. A impermeabilização do solo, as concen- trações de edifícios, os desmatamentos em encostas ou margens de rios, o assoreamento e a retificação ou canalização de rios, são ações que afetam o ambiente natural de uma determinada maneira.
Se a ação do homem tende ao desequilíbrio, o ambiente natural certamente reage, trazendo efeitos inesperados para o ambiente construído e seus ocupantes: inundações, secas, microclimas adversos, erosão, desabamentos, enchentes, voçorocas, ambientes internos insalubres.
A urbanização é um fato irreversível em praticamente todo o plane- ta. No início do século XX, apenas 10% da humanidade residia em áreas urbanas; hoje, metade, mais de 3 bilhões, vive em cidades. Existem 19 megacidades – das quais 15 localizadas nos países ditos em desenvolvimento – com população acima de 10 milhões de habitantes. Essa evolução, por si só, já faz da ecologia urbana um tema fundamental. Nos primórdios do movimento ambientalista, havia correntes que levantavam a tese de uma inviabilidade estrutural das cidades, tidas como irreparavelmente ingovernáveis. Atualmente, poucos ecologistas vislumbram seu próprio futuro e o da humanidade fora de um contexto urbano. Os ambientalistas cuja ação, desde meados dos anos 1970, privilegiara questões globais, como as florestas, a camada de ozônio ou as mudanças climáticas, envolvem-se, cada vez mais, de forma prática e teórica, com os variados desafios que abrangem as cidades e sua sustentabilidade.
Jane Jacobs, veterana jornalista, urbanista e militante comunitária americana, que escreveu o extraordinário Death and life of great American cities (aqui Morte e vida de grandes cidades, editado pela Martins Fontes), tem outra obra, menos conhecida, The economy of cities, na qual desenvolve uma tese revolucionária: ao contrário do que aprendemos na escola, os assentamentos humanos precederam, e não sucederam, o surgimento das primeiras culturas agrícolas. Segundo ela, os primórdios da urbanização se relacionam com o processamento de produtos da caça e do extrativismo. Assentamentos humanos precederam tanto a agricultura como a pecuária. Ela identifica cidades primordiais, com cerca de 2.000 habitantes, 8.500 anos antes de Cristo.
[...] não foi a agricultura, em que pese toda a sua importância, que foi a mais relevante invenção ou ocorrência da era neolítica. Foi o advento de uma economia citadina, sustentável, interdependente e criativa que tornou possível novas formas de trabalho, entre elas a agricultura.
A tese é, naturalmente, polêmica. De qualquer forma, se as origens remotas da urbe são ainda discutidas, o futuro não deixa margem a muitas dúvidas: a grande maioria da humanidade residirá nas cidades. Precisaremos mais que simplesmente “esverdeá-las”, temos de torná-las sustentáveis do ponto de vista ecológico, econômico, social e energético.
Por muito tempo, as relações entre o ambiente natural e o construído foram vistas sob o prisma do conflito. Mundos separados, até certo ponto contrapostos, um servindo de pano de fundo ou jardim ao outro. A ideia da separação, do confronto, da subjugação do ambiente natural diante da von- tade criadora e construtora, foi uma constante. Na ótica marxista, que influenciou tantos urbanistas no século XX, “a contradição entre o homem e a natureza” precedia e sucederia aquela entre as “classes sociais”. Mesmo as correntes de arquitetos que aparentemente valorizavam os espaços verdes não conseguiam perceber que a cidade de concreto, asfalto e vidro, na verdade, não constituía um ente separado da natureza, mas natureza transformada, um novo ecossistema integrado, modificado, diferente do ambiente natural, mas não fora dele, não imune aos seus ciclos, dinâmicas e reações. A planificadora ambiental americana Anne Whiston Spirn assim descreve essa relação sutil e delicada entre o ambiente natural e o construído:
A natureza é um todo contínuo, com o ambiente selvagem num polo e a cidade no outro. Um mesmo processo natural opera tanto no ambiente selvagem como na cidade. O ar, por mais poluído que esteja, é sempre uma mistura de gases e partículas em suspensão. Pavimentação e construção de pedra são sempre compostas por rocha e afetam a transmissão de calor ou o curso das águas exatamente como as superfícies de rocha expostas em qualquer lugar. As plantas, nativas ou exóticas, invariavelmente buscam a combinação de luz, água e ar para sobreviver. A cidade não é totalmente natural nem totalmente construída. Ela não é “desnatural”, mas a transformação da natureza “selvagem” pela humanidade para servir às suas próprias necessidades. [...] A cidade precisa ser reconhecida como parte da natureza e desenhada de acordo com isso. A cidade, os subúrbios e a periferia rural precisam ser vistos como um único sistema evolutivo dentro da natureza, da mesma forma que, indivi- dualmente, todo parque ou edifício dentro do todo mais amplo. A natureza na cidade tem que ser cultivada, como um jardim, e não ignorada ou subjugada.
Assimilar este conceito básico, de que a cidade faz parte da natureza, é o primeiro passo necessário ao gestor ambiental municipal, pois aí está o ponto de partida da sua atividade relacionada com a ecologia urbana. Uma edificação – ou o conjunto de edificações – precisa se moldar de forma har- mônica e interagir convenientemente com seu entorno natural. Diversos aspectos devem ser analisados: local, materiais e formas apropriadas; ven- tilação; mínimo desperdício de energia; águas limpas e saneamento; gestão dos resíduos.
Na história da humanidade, desde cedo algumas pessoas mais atentas ou estudiosas perceberam que certo tipo de intervenção é compatível com o meio ambiente e produz soluções apropriadas, fazendo com que a relação entre ambiente natural e ambiente construído tenda ao equilíbrio, ao passo que outros tipos trazem consequências adversas. Em certas épocas e culturas, essa noção chegou a ser incorporada ao ambiente construído.
Em outras, foi perdida. O exemplo mais extremado de adaptabilidade de uma construção à natureza é o iglu. Uma casa de gelo que protege o ser humano do frio parece inverossímil.Mas a casa dos esquimós é uma grande solução ecológica. As construções mouras e gregas no Mediterrâneo,a arquitetura tradicional do norte da Europa e a tenda nômade no deserto são outros exemplos. A arquitetura colonial portuguesa também se adaptava bem às nossas condições climáticas. Era ao mesmo tempo simples e engenhosa, sobretudo quando comparada a certo lixo arquitetônico “modernoso”, que não consegue funcionar sem climatização e iluminação artificial, e que depende totalmente de um gasto desmedido de energia elétrica, criando ambientes internos insalubres, desagradáveis e depressivos.
CIDADE E NÃO CIDADE
A cidade é também um ecossistema econômico, social, cultural e exis- tencial que se expressa numa incessante teia de relações humanas e de trocas comerciais, culturais, funcionais e afetivas. É o palco de uma bus- ca coletiva de satisfação, de felicidade. Segundo o autor australiano David Engwicht, as cidades:
foram inventadas para facilitar a troca de informação, amizade, bens mate- riais, cultura, conhecimentos, instituições, técnicas e apoio emocional, psico- lógico e espiritual. Esse intercâmbio é mais difícil se as pessoas ficam espa- lhadas pela área rural e não têm acesso a essa troca de oportunidades. É por isso que construímos cidades. Cidades são a concentração de gente e estru- turas que possibilita a mútua troca, minimizando a demanda de viagem. As pessoas desejam acesso a essa rica diversidade de trocas de oportunidades para sua sobrevivência e crescimento como seres humanos. As cidades são o reconhecimento de que para desenvolver nossas plenas potencialidades, ne- cessitamos daquilo que outras pessoas nos podem dar. Cidade é um ecossiste- ma criado pelas pessoas para sua mútua realização [...] As cidades são, ainda, o reconhecimento de que, se estamos destinados a crescer para realizar nosso potencial pleno, precisamos daquilo que os outros podem nos dar. A cidade é, consequentemente, um ecossistema, tal qual uma floresta tropical: tudo está relacionado e é interdependente.
A resposta ecológica aos problemas das cidades não está em escapar delas, mas em prover sua sustentabilidade, encarando-as como ecossiste- mas doentes, que precisam ser reequilibrados. Para tanto, é necessário se estabelecer uma relação de respeito entre o espaço construído e seu berço natural; desenvolver a urbanização ou a reurbanização, de modo a eliminar conflitos com a natureza; e fazer da cidade um espaço democrático, ecumênico, plural, de rica diversidade humana, onde possam se realizar ao máximo os anseios e os sonhos de seus habitantes.
Olá Sirkis.
ResponderExcluirGosto muito dos seus textos sobre urbanismo. Ainda não tive a oportunidade de ler a Jane Jacobs, mas o "Death and Life" já está reservado na Amazon.
AGora, essa teze defendida pela Jacobs da precedência das cidades ao desenvolvimento da agricultura e pecuária é realmente surpreendente, quase nonsense. Quais as bases científicas em que ela se baseia? Quais os indícios? ALiás, há um livro muito interessante sobre este tema, "Armas, Germes e Aço", do Jared Diamond. Você conhece?
Grande abraço,
Marcelo