30/05/2020

Descarbonário teaser1

Estou divulgando pequenos trechos do meu livro Descarbonário como teasers. O livro vai se lançado no dia 18 de junho por via virtual. 
Aqui falo sobre umas histórias à margem da Conferencia do Climate Bali, em 2007.

Kuta

Bali é um exuberante jardim à beira-mar plantado, com muitas estátuas e construções de uma arquitetura hinduísta, como é a maioria da população. Bali destoa, dissonante do resto da Indonésia, país/arquipélago de grande maioria muçulmana que estava, naquele momento, submetida à forte pressão do islã integrista. Aquelas estatuetas de deidades hinduístas – para os islâmicos, uma manifestação de idolatria –, aquele clima sensual, quase promíscuo, no ar, com as revoadas de jovens ocidentais tatuados com seus biquínis, suas bermudas coloridas e suas bandanas.

Fora, durante muito tempo, o paraíso dos surfistas australianos, gringos e brasileiros, mas, em outubro de 2002, conhecera sua noite no inferno. Naquele quarteirão apinhado de gente junto à praia de Kuta, onde, cinco anos mais tarde, eu passaria meu aniversário pegando jacaré, explodiram duas potentes bombas da Jamaah Islamya, grupo vinculado à Al-Qaeda. Mais de 202 pessoas morreram naqueles barezinhos perto da praia – para os terroristas, antros de prostituição e pedofilia dos apóstatas. No local do atentado, onde tomei uma caipirinha brasileira, havia uma placa de metal com uma extensa lista das vítimas. Era difícil imaginar aquele beco luminoso e aprazível naquela noite terrível, coberto de pedaços de corpos humanos, poças de sangue e gemidos.

O ataque prejudicou gravemente o turismo da ilha. O ressentimento dos balineses contra quem tão fortemente impactara seu modo de vida e sua principal fonte de renda ainda era o papo mais insistente dos motoristas de táxi naquele trânsito caótico, dominado pelas motos. Bali utiliza a mão inglesa, mas o volante dos carros é do lado esquerdo. Depois de quase ser atropelado duas vezes, passei a ter mais medo dos enxames de motocicletas do que dos asseclas de Osama Bin Laden. Embora alguns colegas temessem novos atentados durante a COP e ficassem cabreiros, de olho nas mochilas de rapazes de barba, eu confiava na minha boa estrela. Simplesmente não ia acontecer.

Não que a segurança indonésia, conquanto ostensiva, fosse lá grandes coisas. A caminho de Bali, no LAX, o aeroporto de Los Angeles, vi um aviso do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos advertindo que o aeroporto de Denpansar, em Bali, era inseguro e a visita dos cidadãos norte-americanos, fortemente desaconselhada. De fato, o aeroporto lembrava um pouco o antigo Galeão dos anos sessenta. A parafernália de segurança da Conferência do Clima foi acoplada a essa estrutura arquitetônica tosca que não a favorecia. A pista do aeroporto ficava a poucos metros do mar. O controle era burocrático e plácido, e os policiais, afáveis, relax.

Em diversos pontos no trajeto para o Centro de Conferências e nos hotéis, passávamos por bloqueios policiais. O táxi ficava parado naquele calor úmido de sufocar. Usavam uns detectores de metais e, em alguns casos, cães farejadores. Revistavam burocraticamente os porta-malas dos automóveis. Não pude deixar de imaginar como agiria um terrorista suicida. Chegaria limpo, teria um cúmplice no estacionamento do aeroporto com um jaleco bomba localmente fabricado. Ninguém perceberia. Nada o impediria de se explodir no bar onde servem aquelas caipirinhas legitimamente brasileiras ou na casa de massagens ao lado da rua onde ninfetas “hindunésias “ esfregavam com essências exóticas turistas australianos, vermelhos como camarões.

O lado paradoxal daquela relaxada e permissiva ilha   era, naturalmente, a política de drogas imposta por Jacarta, a ferro e fogo, para todo o arquipélago. No controle de imigração do aeroporto, havia uma placa em inglês, curta e grossa: a posse de drogas é punida com death penalty, pena de morte. Alguns anos mais tarde, dois surfistas brasileiros desavisados, com cocaína em suas pranchas, terminariam executados. Fiquei pensando que Kuta merecia um joint. Custava a crer que, de fato, se enforcassem os maconheiros. De qualquer modo, era mais prudente restringir-se à caipirinha no bar dos terroristas do que queimar um baseado ao pôr do sol na praia.

Fumaça mesmo, ali na praia de Kuta, só daquela pira fúnebre. Depois de pegar umas ondas, fui caminhar pela areia com duas jornalistas da França, uma brasileira e uma uruguaia, com quem fizera amizade. Logo nos deparamos com um grupo montando uma alta fogueira. No topo, em uma maca, cercada de muitas flores, a falecida: idosa, miudinha, de cabelos brancos, vestido azul de renda, colares e pulseiras. Os familiares e amigos, enlutados, todos bem vestidos – alguns de terno e gravata, a maioria em trajes locais –, animados, plácidos, sorridentes, aguardando. Alguém produziu um facho com o qual acenderam a base da pira. Logo, as labaredas subiram. Em poucos minutos tivemos a oportunidade de assistir a uma cremação ao vivo com direito a odor de churrasquinho queimado. A poucos metros dali, os surfistas ciscavam pela espuma das ondas.

No final, teve de tudo na Conferência de Bali. A volta não prevista do então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon; o choro de seu representante, Yvo de Boer; a vaia do resto do mundo à diplomata do Departamento de Estado norte-americano, Paula Dobriansky: sua obstrução, depois recuo; a Índia cantando de galo na última hora; e, afinal, como não poderia deixar de ser, um consenso diplomático meias-tintas consagrando o mínimo denominador comum. No mais, o folclore. Rodava por Bali um taxista holandês dando a volta ao mundo com seu esquisito carro solar. Parecia uma velha Romiseta puxando um burro sem rabo com painéis fotovoltaicos. A imagem daquele taxista solar com seu jeitão hippie permaneceu na minha memória, por alguma razão, como imagem marcante, além da pira fúnebre da velhinha de Kuta e da bronca de Al Gore no plenário da COP 13.



Nenhum comentário:

Postar um comentário