29/05/2018

Nossa crise de autoridade


Acho uma imensa --e triste--  graça quando os comentaristas da grande mídia criticam o governo Temer por sua “falta de autoridade” diante dos caminhoneiros. Embora a autoridade dos governantes venha em forte erosão no Brasil (e noutras partes do mundo também) há um bom tempo, o caso do presidente Michel Temer é de um extremo de impopularidade. Resulta de diversos fatores mas, sobretudo, do bombardeio cotidiano e ininterrupto que ele sofre dessa mesma grande mídia.

 Tive muitas dúvidas –e continuo a tê-las—sobre a pertinência histórica do impeachment da Dilma. Era um governo deveras catastrófico. Praticara um estelionato eleitoral descarado.  Cabia, de fato, por um fim ao hegemonismo e à pretensão do PT de tornar-se o PRI brasileiro:  perpetuar-se no poder às custas de uma imensa máquina de corrupção dentro do Estado e suas empresas. A base jurídica do impedimento, no entanto, era e permanece controversa. Carente de um mecanismo institucional regular de derrubada do governo, o voto de desconfiança parlamentarista, o Brasil, pela segunda vez em quatro mandatos,  promoveu a crise de estado para remover uma presidente inepta. 

  Na época eu advertia que os sucessores herdariam a crise e que o PT teria tempo de responsabiliza-los pela dita cuja com  oportunidade de se eximir. Pelo menos Lula, pessoalmente,  conseguiu. Apesar de preso mantem sua dianteira nas pesquisas com boa possibilidade de ser eleito, caso pudesse se candidatar. O PT ficou muito desmoralizado e combalido mas a liderança pessoal/carismática  de Lula continuou nos segmentos mais pobres e se nutre da desmoralização de seu ex-aliado agora adversário.

 Temer fora escolhido pelo próprio PT para vice e, nos seus primeiros tempos,  achei uma certa graça do ódio que os petistas passaram a lhe devotar, da profunda raiva que tinham dele. Lhes dizia: foram vocês que escolheram o cara para vice! Agora deixem-no governar como transição. Não apostem no quanto pior melhor pois virá algo muito mais à direita. 

 No governo,  o PMDB chamou o Henrique Meirelles, o ex-presidente do Banco Central de Lula,  que implementou uma política que, grosso modo,  fazia sentido a curto prazo para tirar a economia do fundo do buraco que a política de Dilma o metera,  antes e depois do seu cavalo-de-pau na economia. No entanto a política de Meirelles, desdobrada no tempo, fazendo de uma necessidade imediata virtude permanente mostra-se um problema. 

 Daquele conjunto de medidas de UTI econômica –que salva a vida do paciente mas não garante sua saúde--  destacava-se a reforma da Previdência, algo impopular em todo o mundo mas fundamental. As pessoas estão vivendo muito mais, há na pirâmide etária menos jovens para sustentar os aposentados com suas contribuições e o Brasil tem segmentos privilegiados num nível que nem os países ricos conseguem bancar. Ou seja, era necessário, de fato,  tomar medidas que assegurassem a sobrevivência futura da Previdência,  estruturalmente ameaçada aqui como em outros países que estão envelhecendo.

 A reforma da Previdência provavelmente teria seria aprovada não fosse o episódio de Wesley Batista, da JBS, sendo recebido no Palácio Jaburu por Temer e grampeando-o  por conta de uma conspiração ainda hoje meio obscura,  orquestrada pelo então procurador geral Rodrigo Janot com auxiliares que faziam jogo duplo.  Resultou naquela delação premiada que estarreceu e escandalizou o país e que depois grampeou-se a si mesma.   

 O escândalo, equivalente a uma explosão atômica, inaugurou essa era atual  de completa irresponsabilidade e histeria cujo maior quinhão de culpa cabe à grande mídia. A fita gravada em condições que, normalmente,  o Judiciário brasileiro não acolheria, não chega a ser conclusiva com força de prova insofismável embora altamente constrangedora, politicamente,  para o grampeado.  Mas ela  mostrou que todos sabíamos: o PMDB comunga das práticas corruptas hegemônicas na política brasileira. Acaso supresa? 

 A partir daí a grande mídia que não conseguiu nunca ter o mínimo de bom senso para conseguir separar o personagem que poderá se julgado findo o mandato, como qualquer cidadão responde pelos atos, da instituição presidencial que, essa, precisa ser preservada,  senão se instala o caos. Por duas vezes ela prestou concurso as suas tentativas de remoção pelo Janot via Congresso, a segunda em menos de uma ano,  como se isso fosse produzir algum presidente de transição melhor. Era só olhar a linha sucessória...A falta dessa noção, elementar, do que é pior para o país,  provem de uma onipotência jornalística. O todo poderoso coleguinha não se conforma que um governante ou auxiliar  que esteja na sua alça de mira deixe de “cair”. Tem que derruba-lo , a qualquer preço para mostrar sua força. 

 A partir daí  o frágil e apagado  presidente de transição,  um insider da política tradicional, herdeiro da chapa formada pelo PT, tornou-se o alvo diário não apenas de seus antigos aliados, traídos, cegamente ressentidos,  como também da grande mídia, do MP e de setores do Judiciário que se atribuem o protagonismo heroico de livrar o país dos corruptos como uma consideração absoluta que não considera nenhum outro fator ou dano colateral. Eles simplesmente não se interrogam, nem por um instante, se os métodos  e a dose da quimioterapia não periga matar o paciente: a frágil e relativamente recente democracia brasileira.

 Toda noite o país é exposto a uma catarse emocional com aquele noticiário repetitivo, histérico, editorializante –frequentemente panfletário--  no qual ela se arroga o papel de palmatória moral do país lá do alto se seu poderio de “construir” a realidade tal qual será percebida por dezenas de milhões de pessoas. Joga ininterruptamente na emoção e no “indignismo”. Isso meses e meses a fio com reverberação das redes sociais cria o clima patético no qual nos encontramos atualmente e que é o viveiro da extrema direita.  Evidentemente, que todos fatos devem, sim, ser noticiados. No entanto, qualquer um que tenha acesso pela TV a cabo  aos noticiários em países com democracias mais consolidadas,  percebe como é anômala essa nossa cobertura da corrupção nossa como o dado absoluto, dominante, permanente,  da atualidade,  aconteça o que acontecer no Brasil e no mundo.

 Nas democracias, em geral, o tom é mais sóbrio e quando os jornalistas “editorializam” o fazem em painéis plurais de convidados onde se expressam variadas opiniões e análises.  Um tom assim como esse que temos aqui costuma ser apanágio de sistemas de mídia de hegemonia governamental como o de Vladimir Putin, na Rússia, por exemplo. Um noticiário fortemente direcionado  e opinativo expressando basicamente as posições do governo. No Brasil, temos esse  poderio quase monopolista só que expressando uma oposição virulenta e sistemática e um esforço para derrubar  –não se sabe bem de que maneira e para colocar quem no lugar--  um governo frágil e desmoralizado  governo de transição. Isso certamente ameaça sua única missão legítima: aquela de estabilizar minimamente o país para que possamos realizar, em paz, eleições gerais de 2018, a partir das quais formar-se-ia –se Deus quiser--  um outro governo mais legítimo e minimamente respaldado socialmente. Muito embora,  atualmente,  não se consiga bem vislumbrar  quem poderia propiciar isso ao Brasil... Nessa situação periclitante não botar fogo no circo é uma providência  recomendável. 

 Esse fenômeno de diária demolição midiática de um governo bundalelê que busca sua sobrevivência no jogo fisiológico parlamentar caracteriza a situação entrópica em que nos encontramos. Perdemos a oportunidade das reformas –sobretudo a da Previdência—e os remédios de economia clássica (ou neoliberais, se preferirem o clichê) já deram o que tinham que dar. A UTI afasta o risco mas não torna o paciente saudável. Uma influência econômica externa de sinal negativo volta a interferir e se avolumar: aumento dos juros nos EUA, protecionismo e maluquices de Trump, alta do petróleo, instabilidade.

  Nessa situação o Brasil  está dividido, pulverizado como nunca. Sua classe média anda perfeitamente enlouquecida, à direta e à esquerda, como grande contribuição das redes sociais,  esse patético multiplicador da discórdia e da agressividade. As “políticas de identidade”, pelas quais grandes temas que poderiam unir os brasileiros acabam soterrados, tornam-se fatores de mais divisão e subdivisão. Eis que a Torre de Babel, a algarravia  ou a fitna –como dizem os hispanos e os árabes— cresce e se multiplica do Iapoque ao Chuí. 

 O fenômeno mais grave de todos, de longe, é o aumento notável da criminalidade violenta e da insegurança cidadã que está levando as pessoas ao pânico --como sempre péssimo conselheiro. Para coroar temos aí essa greve (com lockout patronal) de caminhoneiros que paralisa o país abrindo caminho para outras, oportunistas, como a aventada dos petroleiros cujas lideranças sindicais nunca assumiram a responsabilidade pelo dano causado no momento anterior.

 Um governo assim tão desarvorado, de fato,  não terá mais autoridade alguma para lidar com esse tipo de problemas. À esquerda, alguns cretinos imaginam que isso de alguma forma pode vir a favorece-la. Deveriam estudar mais os processos que levaram a vitória do fascismo nos anos 20 e, depois, do nazismo, nos 30 do século passado. A extrema direita está bem mais apta que a extrema esquerda para explorar o desalento e  os ressentimentos sociais  quando os conflitos se tornam histéricos. 

 O problema da direita brasileira, historicamente estatista, é que resolveu, como antes de 64, bancar as  vivandeiras, e ir bater à porta dos quarteis porque seu líder político é de tal modo primário que não aparece, a princípio,  como  alternativa de poder imaginável, ainda que não nunca se deva subestimar a burrice humana em tempos malucos. Trump está aí para ilustrar...

 Os militares, no entanto, sabem melhor. Não tem a menor vontade de voltar a ter que exercer responsabilidades de governo. A sociedade atual é mil vezes mais complexa do que aquela recém-industrializada e em plena influência da guerra fria, de 1964. Sabem que os problemas do país são tremendamente complicados e não existe mais uma geração “política” de oficiais que aspire o poder como aquela que se formou e bifurcou a partir do tenentismo. Os novos tenentistas são alguns expoentes do Judiciário e do MP, instituições que hoje acumulam um imenso poder mas apenas para prender, condenar e destruir esquemas delitivos mas não aquele poder que permita resolver, na vida real, os tremendos problemas da população brasileira que se descortinam diante de nós. Alguns poderão ser assolados pela tentação de querer usar os militares como sua guarda pretoriana.

É muito ingênuo acreditar que simplesmente combatida a corrupção tudo mais irá se resolver. Frequentemente ouço pessoas dizendo: "o problema  do Brasil  é que o dinheiro do país foi todo roubado. É só deixar de roubar e a vida vai melhorar". Bem, há dois anos, felizmente, deixaram de roubar bilhões nas estatais. Aliás, o  gasto público, em si, foi fortemente contido.  O BNDES deixou de despender dinheiro do tesouro com os “campeões” da economia. A devassa, só nas empreiteiras suprimiu diretamente cerca de 600 mil empregos. Indiretamente alguns milhões. Por enquanto não dá para garantir que isso tenha recuperado a economia e gerado uma nova cultura no mundo empresarial ou político. Pode se dizer que acabou a impunidade e isso é bom. Mas substituí-la por um clima permanentemente persecutório dificilmente será  para a felicidade geral da nação ou "bom para os negócios"

 Não reclamem da falta de autoridade do governo! Ela é o resultado lógico de opções que foram tomadas por atores poderosos e irresponsáveis,  incapazes de entender como se dão os processos históricos nem levar em consideração a famosa lei das consequências não antecipadas. A corrupção é um grave problema do país e precisa ser vencida. Isso não vai acontecer do dia para noite nem, unicamente, pela via punitiva. Certamente não será pela criminalização da ação política nem pela sua descontextualização cultural ou pelo esquecimento de que a representação política de má qualidade que temos hoje não são extraterrestres que vieram de Marte.

 Foram todos eleitos.  Expressam uma determinada cultura política a ser superada mas que não o será simplesmente pela vingança penal e pelo indignismo. Por outro lado,  essa corrupção é apenas uma parte mais visível do imenso patrimonialismo brasileiro onde vicejam privilégios perfeitamente “legais” ou semi-legais que drenam da sociedade para o Estado recursos talvez maiores do que a própria corrupção deslavada. Da mesma maneira, se analisarmos o momento anterior, o desgoverno, a incompetência e as políticas públicas equivocadas causaram prejuízos ao país ainda maiores do que a corrupção. O quadro atual não é em nada favorável a uma melhor governança. Favorece a paralisia e a passividade. Não há autoridade e as condições governabilidade estão perto de zero.

 É urgente estabilizar minimamente o país para permitir que as eleições de 2018 --cujo prognóstico até agora não é nada animador--  ocorram num clima de calma e possibilitem um debate eleitoral minimamente sério e sóbrio. Esse mesmo que os demagogos extremistas preferirão coibir. A responsabilidade de cada um está na razão de seu poder e de sua influência.  Isso tudo pode desandar muito mais do que se imagina. Devagar com andor que o santo é de barro. Mas, diziam: a esperança é a última que morre e Deus é brasileiro... Tomara que sim. 


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