18/02/2018

O analgésico carioca


A intervenção militar na segurança do Rio não é exatamente uma novidade. Vem sendo recorrente desde os anos 90. Em várias ocasiões o tiro saiu pela culatra. Em uma ocasião deu certo por uns tempos. Foi na sequencia de operações que culminaram com a expulsão do tráfico do Complexo do Alemão e a primeira fase das UPP. Os militares atuaram como apoio de policias estaduais, motivadas,  numa operação com amplo apoio social e de mídia e que teve sucesso durante algum tempo no que diz respeito fazer recuar o controle territorial da bandidagem sobre uma parte das favelas. 

 Acabou fracassando, estrategicamente, porque não foi acompanhada por uma profunda reforma das policias com o fim das escalas de serviço,  porque a política de drogas se manteve a mesma e porque a governança do estado logo se acabou nos desvãos  da cleptocracia cabralina e da crise nacional causando o colapso da autoridade e da confiança social. 

Agora,  não é mais uma intervenção “em apoio a” mas um empoderamento do Exército por sobre a segurança do estado. A gota d’agua, para além da sesquipedal inépcia do lastimável Pezão e do colapso da governança estadual, com seu reflexo nas polícias, foi uma série da manifestações do crime desorganizado notadamente um arrastão carnavalesco na -- ai meu Deus!--  Avenida Vieira Souto. Com a zona Sul sofrendo o que as zonas Norte e Oeste já padecem há muito tempo, tornou-se intolerável a percepção da situação. 

 A curto prazo, a intervenção e, sobretudo, as suas  manifestações mais ostensivas, podem surtir um certo efeito. A simples o presença do Exército nas ruas, que a PM por força de sua escala de serviço e da sua total desmoralização já não assegurava, inibe um pouco exatamente aquela criminalidade que de imediato mais ameaça  população: o crime desorganizado: assaltantes periféricos aos núcleos  duros do tráfico, pivetes, meliantes de oportunidade. 

 Isso não deve ser subestimado porque são justamente eles os mais suscetíveis a cometerem latrocínio. Uma pessoa tem muito mais chance de ser assassinada, na rua ou em casa,  por um desses pés-de-chinelo do que por um bandido experiente de uma das facções de tráfico. Então ocupar militarmente o espaço público que nossa PM “de bico”, desfalcada de contingente,  não consegue mais  é um dado positivo da mesma forma que o efeito psicológico, inicial, dessas operações.

 O problema está na continuidade da intervenção, quando se começa a bolir com as questões mais estruturais e, aparentemente “insolúveis”: uma policia “de bico” com uma escala de serviço maluca onde o PM, na prática, trabalha na corporação duas vezes por semana e o policial civil uma. Que patrulham a cidade em viatura alheios ao que acontece nas ruas pelas quais passam zunindo.  Polícias minadas por uma corrupção histórica institucionalizada e por um “arreglo” com as facções do tráfico que ninguém de fato ousa enfrentar até as últimas consequências. Uma política de drogas cujo efeito prático é oferecer uma logística inesgotável e fácil ao bandidismo armado que administra pela violência essa  economia praticamente sem limites, altamente corruptora,  cujo efeito indireto é muito pior do que aquele, individual, das substancias químicas que oferece a um mercado que sempre existiu e existirá.

 Um general do exército estaria melhor preparado para enfrentar essas quadraturas do círculo do que um coronel da PM ou um delgado de polícia? A princípio pode se dizer que as estruturas militares não foram corrompidas pelo arreglo como as policiais. No entanto, ao se desdobrar no tempo, nada garante que ela não possa vicejar também nos quarteis. 

 A experiência mexicana ilustra como importantes segmentos militares foram afetados para além do outro grande problema  que é a tentação --que torna-se inevitável num conflito renhido mais prolongado--  de recorrer à tortura e à eliminação sistemática. 

 Tivemos no México o  tétrico advento dos Zetas, a facção mais sanguinária de todas, constituída de militares das forças especiais que acabaram recrutados pelo canto de sereia enriquecimento fácil no tráfico. Não é a toa que parte da oficialidade se preocupa com razão com as consequências de médio prazo de um envolvimento militar no combate ao tráfico de drogas. Nunca deu certo e em certos lugares deu muito errado.


 A intervenção portanto pode trazer um alívio momentâneo. Passado o efeito do analgésico, sem governabilidade nem governança, sem confiança da população no governo e nela própia, sem o fim do imbecil proibicionismo das drogas que só potencializa a bandidagem, sem um policia de dedicação exclusiva, ocupação territorial do asfalto a pé, fim do controle territorial das facções sobre as favelas e políticas econômicas e sociais que devolvam um mínimo de otimismo e esperança, continuaremos afundados numa violência e numa entropia sem fim. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário