(Esse texto é de 2003, não perdeu um pingo da atualidade…)
A capacidade de reposição e
reprodução do tráfico lembra um monstro
da mitologia grega: a Hidra de Lerna. Tinha muitas cabeças e cada vez que uma
era cortada, nasciam várias outras. As drogas,
para além dos eventuais efeitos negativos sobre a saúde pública,
constituem a base de uma gigantesca atividade econômica, cujo impacto é
infinitamente mais grave e destruidor do que
os efeitos negativos do seu uso ou abuso. Os bandidos armados são apenas
a ponta visível do iceberg do tráfico na própria comunidade. São a falange
militar de um sistema de distribuição comercial que emprega mães de família e
até idosos, que embalam, crianças que funcionam de mensageiros e fogueteiros e
mais uma série de atividades consorciadas, algumas de entretenimento, festivas
e musicais.
O tráfico é uma poderosa fonte de riqueza no meio da pobreza e ceva as
“bandas podres” das polícias, da justiça e do sistema penitenciário. Um jovem
em busca de trabalho ganhará muito mais como “avião” do que como pedreiro, balconista ou
eletricista. O status de traficante lhe granjeará “respeito”, objetos de
consumo cobiçados, atenção feminina. Toda uma cultura fascistóide se forma ao redor dessa atividade econômica,
realçando valores machistas, bairristas
e sádicos. Valores éticos e religiosos
e o medo da morte nunca impediram a
reposição daqueles freqüentemente eliminados. Gerações sucessivas vão surgindo,
com uma tendência à produção de bandidos cada vez mais jovens, “bolados” e
cruéis. Sua movimentação agora é um ataque frontal à sociedade e ao Estado,
numa fase inicial, tosca, que poderá ainda piorar muito.
O tráfico existe em função do
mercado composto de viciados e usuários
menos ou mais eventuais. A repressão nesta ponta, que atualmente volta a ser
objeto de propostas e campanhas de mídia,
é ineficaz. Seria realista
prender usuários quando não há lugar suficiente nas prisões sequer para os bandidos violentos? A idéia da
descriminalização do usuário vem avançando lentamente, de forma oblíqua. Ela
pode eventualmente coibir uma maior interferência policial na privacidade dos
mesmos e limitar a extorsão a ela
vinculada, mas não altera o “x” do problema e traz consigo a incoerência da procura ser tolerada mas a oferta ilegal.
Para reduzir o uso e abuso de drogas ilícitas existe um único caminho
viável que é o mesmo que se aplica, com
sucesso, às drogas legais: a educação e a prevenção. Qualquer ex-tabagista sabe como é difícil deixar o cigarro, no entanto, cada vez menos gente fuma. Todas drogas, tanto lícitas como
ilícitas, acarretam potencialmente algum
dano, maior ou menor, mas seus efeitos e eventual dependência são socialmente
secundários e muito menos graves que as conseqüências devastadoras da
ilegalidade da drogas como motor de uma economia subterrânea e pivô das disputas pelos seus mercados. No Rio de Janeiro morrem por ano menos de cem
pessoas por overdose de cocaína. Essas mortes poderiam ser reduzidas se houvesse
um maior controle medico sobre
dependentes e substâncias. Não há comparação
de escala entre a mortandade por intoxicação química e o morticínio de
milhares de pessoas nas guerras pelos mercados de drogas. Além desse massacre a
sociedade sofre com o imenso poder corruptor e intimidador dessa atividade
cujas metástases se espalham pelas comunidades, pelas polícias, por outras
instituições. O tráfico praticamente destruiu o movimento associativo nas
favelas, por exemplo.
Os defensores da descriminalização do usuário,
em geral, se originam na esquerda e
abordam a questão sob o ângulo dos direitos civis, da não ingerência do estado
na privacidade das pessoas. Já a defesa da legalização, aparentemente mais extremada, tem, curiosamente,
seus principais defensores, num campo mais conservador. A revista inglesa The Economist, o
premio Nobel de Economia Milton Friedman,
o promotor Vicent Bugliosi, o jornalista William Buckley Jr são alguns
desses pensadores que partem de um amargo realismo. Seu argumento é de uma
radical simplicidade: queremos destruir o tráfico? Então liquidemos sua base econômica permitindo a compra legal e controlada
das drogas ilícitas... na drogaria. Regula-las, cobrar impostos sobre elas e
dar-lhes o mesmo tratamento das drogas hoje lícitas, mas,
nem por isso, menos nocivas à
saúde.
No início, raciocinam eles, o
consumo poderia até aumentar, pela novidade, mas a médio prazo, provavelmente, cairia, como o do cigarro, mercê de campanhas educativas e de prevenção.
O problema das drogas sairia assim do âmbito do morticínio, da guerra pelos
mercados, dos desafios armados ao estado e à sociedade e se concentraria no campo da saúde pública. A droga deixaria
de matar a bala milhares de pessoas e construir impérios do crime. Continuaria
a matar, de overdose,
algumas dezenas de drogados
crônicos ou temerários. Cessaria a relação perversa entre o viciado e o
traficante. Um mal maior seria assim reduzido a um mal menor. O
exemplo invariavelmente citado por esses pensadores liberais - conservadores é
o da Lei Seca. Ao tentar impedir os americanos de encherem a cara o presidente
Hubert Hoover, nos anos 20, acabou
fabricando Al Capone e uma geração de poderosos traficantes do álcool ilegal.
Legalizado novamente, nos anos 30, por
Franklin Delano Roosevelt, o alcool continuou a ser um flagelo social e de
saúde mas parou de produzir e cevar o gangsterismo. A solução defendida por The
Economist , Friedman, Buckley Jr e outros talvez não seja viável, a curto
ou médio prazo, em um só país,
isoladamente. Mas debate-la deveria deixar de ser tabu.
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