25/09/2012

Megalópolis, meu novo livro


 Foi adiado para o dia 23 de outubro, terça-feira, às 19 horas, na Livraria da Travessa, no Shopping Leblon, o lançamento de meu novo livro Megalopolis.  Preferi ter mais tempo para distribui-lo (sai do prelo no sábado) e   também conclui, por diversas razões, que era melhor fazê-lo depois do primeiro turno das eleições. Assim, aguardo todos os amigos no dia 23, na Travessa! Abaixo um trecho do primeiro capítulo. Também já disponível, o prefácio.



O desafio ecológico das cidades

A urbanização é um fato irreversível em praticamente todo o planeta. No início do século XX, apenas 10% da humanidade residia em áreas urbanas; hoje, metade — mais de 2,9 bilhões — vive em cidades. Existem 19 megacidades, das quais 15 localizadas nos países ditos em desenvolvimento, com uma população acima de dez milhões de habitantesEssa evolução, por si só, já faz da ecologia urbana um tema fundamental. Por muito tempo, as relações entre o ambiente natural e o construído foram vistas pelo prisma do conflito. A ideia da separação, do confronto, da subjugação do ambiente natural ante a vontade criadora e construtora foi uma constante. Na óptica marxista, que influenciou tantos urbanistas no século XX, “a contradição entre o homem e a natureza” precedia e sucederia àquela entre classes sociais. Mesmo as correntes de arquitetos que, aparentemente, valorizavam os espaços verdes não conseguiam perceber que a cidade de concreto, asfalto e vidro, na verdade, não constituía um ente separado da natureza, mas natureza transformada, um novo ecossistema integrado, modificado, diferente do ambiente natural, mas não fora dele, não imune a ciclos, dinâmicas e reações. 

 A criação do homem interage incessantemente, para o bem ou para o mal, com o ambiente natural que a rodeia e envolve. No ambiente construído, a natureza não chega a desaparecer; permanece à vista e não está apenas nas árvores e áreas verdes das ruas, das praças, dos parques, dos jardins e até mesmo dos terrenos baldios. Está no ar, nas águas de rios, canais e lagoas; está na fauna, nos insetos e nos microrganismos que convivem conosco no ambiente urbano. As nossas construções são assentadas sobre uma geologia específica, que tem influência sobre tudo o que vai acontecer com elas e os seres humanos que as habitam. Os materiais utilizados nelas (areia, terra, rocha, pedras, mármore, concreto, asfalto) pertenceram ao entorno natural. Sua extração tem certas consequências, da mesma forma que o modo como o homem os utiliza, dando forma aos projetos arquitetônicos. A impermeabilização do solo, as concentrações de edifícios, os desmatamentos em encostas ou margens de rios, o assoreamento e a retificação ou canalização de rios são ações que afetam o ambiente natural de uma determinada maneira. Se a ação do homem tende ao desequilíbrio, o ambiente natural certamente reage, trazendo efeitos inesperados para o ambiente construído e seus ocupantes: inundações, secas, microclimas adversos, erosão, desabamentos, enchentes, voçorocas, ambientes internos insalubres. (1)

Devo a clareza desses conceitos, que expus em meu livro Ecologia urbana e poder local, à Anne Whiston Spirn. Em seu livro, de 1984, The granite garden(2) encontrei a melhor explanação desses postulados da ecologia urbana. O livro de Spirn, uma professora de paisagismo, arquitetura e planejamento regional da universidade da Pensilvânia, é recomendado com entusiasmo por Jane Jacobs, hoje anciã, mas sempre lúcida e aguda, que há muitos anos mora em Toronto, onde, por um tempo, assessorou a Prefeitura [...] Em sua obra mais famosa, Life and death of great american cities(3), escrita no final dos anos 1950, mais de uma década antes do surgimento do movimento ambientalista contemporâneo, ela estabeleceu os alicerces para um pensamento de sustentabilidade urbana.

Não se trata, simplesmente, da constatação de que é preciso preservar espaços verdes nas cidades, o que é reconhecido até em propostas urbanísticas essencialmente antiecológicas, mas da assimilação de que as próprias cidades constituem um ecossistema.  Muitos modernistas valorizavam espaços verdes, mas consideravam o ambiente natural um estorvo a ser vencido na afirmação de sua obra criadora. O mestre Le Corbusier chegou a formulá-lo dessa maneira:

A casa, a rua, a cidade, são pontos de aplicação do trabalho humano; devem estar em ordem, senão se opõem aos princípios fundamentais que temos como eixo; em desordem, nos fazem frente, nos travam, como nos trava a natureza, ambiente que combatemos todos os dias. (4)

Na escala de planejamento urbano, esse pensamento resultou francamente desastroso ao desprezar a principal matéria da qual é feito o tecido urbano, as calçadas, as esquinas, as praças, as lojas na rua: a densidade humana, que cria a urbanidade, onde o espaço público é primordial e a mistura de usos é a argamassa integradora. 

Tentou-se substituir o tecido urbano tradicional por não cidades de condomínios ensimesmados, com torres cercadas de grades ou superquadras, usos segregados, vias expressas, shoppings e uma sufocante dependência do transporte individual. Criou-se um bizarro espaço, nem urbano nem rural, na escala do automóvel, não do pedestre. Isso, frequentemente, no bojo de um discurso ambientalmente sedutor: supostamente essa não cidade seria melhor para a preservação de espaços verdes e para a qualidade de vida dos moradores que a promíscua cidade densa, cheia de gente na rua. Mas as próprias áreas verdes urbanas dependem da dinâmica dos bairros que as rodeiam. Ressalta Jane Jacobs:


[...] longe de automaticamente qualificar sua vizinhança, os parques de vizinhança eles próprios são direta e drasticamente afetados pela maneira com que a vizinhança age sobre eles [...] Existe algo sobre o arranjo da vizinhança que afeta fisicamente o parque? Sim. Essa mistura de usos nos edifícios produz de forma direta a mistura de usuários que entram e saem do parque em horários diferentes. Usam os parques em horários diferentes uns dos outros porque suas programações de vida diárias se diferenciam. O parque então possui uma intrincada sequência de usos e usuários.

Ecologia urbana, portanto, não se confunde com simples conservação do verde e de amenidades paisagísticas, nem com um zoneamento nostálgico da vida rural, como os subúrbios motorizados de classe média americana. A ecologia urbana tem como base a multiplicidade de relações que compõem esse complexo ecossistema.

Minhas manifestações de antipatia pela não cidade em suas variantes modernistas, “planificadas” (condomínios isolados ou superquadras, vias expressas e shoppings, ou aquela mais americanizada do urban sprawl — subúrbios de classe média com charmosas ruas arborizadas de casa e jardim) merecem duas ressalvas. Em primeiro lugar, a existência desses tipos de aglomerados de baixa densidade constitui fato consumado e irreversível. Por outro lado, há numerosas pessoas que apreciam o estilo de vida que isso lhes proporciona, 0 que deve ser respeitado. Portanto não há como fugir dessas não cidades e necessita-se de políticas que lidem com os aspectos mais problemáticos sem muita ilusão em relação à possibilidade de revertê-las. Modelos urbanísticos, uma vez implementados, têm vida muito longa e consequências que sobrevivem em muitas gerações.  É difícil reverter atrocidades urbanísticas das décadas de 1950, 1960 e 1970, ainda que, na França, se discuta seriamente a demolição de alguns dos conjuntos residenciais  HLM e a total reconstrução e remodelação urbanística dessas áreas, hoje povoadas de imigrantes e com uma altíssima criminalidade e incivilidade. 

Em relação ao futuro, no entanto, é necessário não perseverar nesses modelos, sendo recomendável revitalizar os centros das cidades, reabilitar os bairros residenciais, com usos diversificados, afirmar sem complexos as vantagens da razoável densidade, dos espaços públicos generosos para com os pedestres. Para tanto, é preciso que se revejam regulamentações urbanísticas que consagram densidades baixíssimas e que segregam, espacialmente, o uso residencial do comercial, do institucional,o que quase sempre também resulta em segregação social. 

A urbanização vertiginosa dos últimos quarenta anos não é, ao contrário do que imaginam alguns, simples subproduto de uma estrutura rural fundiária injusta ou de um tipo de agricultura cada vez mais mecanizada e menos intensiva em termos de absorção de mão de obra. É principalmente movida pelo desejo de a juventude rural ter acesso a oportunidades, bens materiais, conhecimentos e vivências que só a urbe tem como oferecer, precisamente pela imensa gama de oportunidades de contato. O australiano David Engwitch em seu livro Towards an eco-city define isso de forma eloquente: 

As cidades foram inventadas para facilitar a troca de informação, amizade, bens materiais, cultura, conhecimento, intuições, habilidades e também troca de apoio emocional, psicológico e espiritual. Essa troca é mais difícil se as pessoas ficam espalhadas pela área rural e não têm acesso a essa troca de oportunidades. É por isso que construímos cidades. Cidades são a concentração de gente e estruturas que possibilita a mútua troca minimizando a demanda de viagem. As pessoas desejam acesso a essa rica diversidade de trocas de oportunidades para sua sobrevivência e crescimento como seres humanos. As cidades são o reconhecimento de que, para desenvolver nossas plenas potencialidades, necessitamos daquilo que outras pessoas nos podem dar.  A cidade é um ecossistema criado pelas pessoas para sua mútua realização. Num ecossistema, assim como numa floresta tropical, tudo está interrelacionado e é interdependente. Cada organismo provê algo essencial para a vida de outros organismos e, em troca deles, recebe aquelas coisas essenciais para a própria sobrevivência e bem-estar. (5)

Mas, para muitos, a cidadania não é plena. O maior problema ecourbanístico do sul do planeta é a cidade informal de favelas, loteamentos clandestinos e similares com seus variados nomes: villas miséria, poblaciones, chabolas, townships, shanty towns, bidonvilles, casbah. Nas grandes cidades latino-americanas, asiáticas, africanas, árabes e em partes crescentes do leste da Europa, proporções que variam de vinte a mais de oitenta por cento das edificações são ilegais, foram construídas sem licença e fora das leis urbanísticas, em terrenos que raramente pertencem aos ocupantes dessas benfeitorias. Trata-se do impacto da intensa urbanização dos últimos quarenta anos, confrontada com a inadequação das regulamentações edilícias e com os anacronismos da estrutura fundiária urbana. 

Em todas as cidades brasileiras, em maior ou menor escala, encontra-se a cidade informal. A pobreza e a exclusão social são, sem dúvida alguma, desequilíbrios que comprometem a existência de um ecossistema urbano sadio. Porém, se a miséria sempre está na cidade informal, nem toda cidade informal é completamente miserável. Há certa mobilidade social que dá acesso a novos bens de consumo e espaços de moradia mais amplos (em geral, crescimento vertical das habitações). Na própria comunidade, ocorre um desdobramento social com uma pirâmide local de “ricos”, de classe média e de pobres. Ao lado disso, persiste a precariedade no saneamento básico, na coleta de lixo e, em muitos casos, os riscos de desabamento ou inundação. 

Algumas medidas são fundamentais, e a primeira delas é estabelecer políticas públicas que levem à integração com a cidade formal, à transformação da favela em bairro, não obstante condições urbanísticas originais, o que implica urbanizar, melhorar a acessibilidade, legalizar a posse dos terrenos e das edificações, fazendo os novosproprietários pagarem IPTU, ainda que reduzido, e manter a presença constante do Poder Público. Isso exclui apenas uma fração, relativamente reduzida, de edificações em área de risco, irreparavelmente insalubres ou situadas em logradouros públicos, que devem ser removidas. Implica, ainda, construir limites, fronteiras físicas claramente demarcadas entre a comunidade e seu entorno natural. Naturalmente, tais limites físicos, sejam muros, grades ou cercas, nada garantem se não resultarem de um acordo de regulação do crescimento pactuado com a comunidade, o que é muitas vezes viabilizado pelo subsídio a projetos geradores de renda, como mutirões remunerados de reflorestamento, lixo ou saneamento, após os quais o poder local passa a ter mecanismos de pressão. 

Um aspecto crucial da integração desses bairros informais na cidade formal é criar regras próprias de uso do solo e de edificações, adaptadas às condições locais e pactuadas entre os poderes públicos, as comunidades e os demais interessados. Ou seja, a criação de um código de obras e de um código de procedimentos ambientais ajustados àquela realidade específica, uma nova política integrada de regularização, ordenamento e contenção da favelização e do loteamento ilegal, novos instrumentos, como o parcelamento e a utilização compulsória, a regularização fundiária, a titulação, a criação de regras urbanísticas, construtivas e ambientais específicas para favelas.

É preciso regularizar, do ponto de vista urbanístico e fundiário, a cidade informal e implementar essa verdadeira revolução socioeconômica que representa o processo de regularização e titulação, que, na concepção do peruano Hernando de Soto, lidará com as casas construídas em terras cujos direitos de propriedade não estão adequadamente escriturados e não podem transformar-se de pronto em capital, não podem ir a mercado fora dos estreitos círculos locais, em que as pessoas se conhecem e confiam umas nas outras, nem servir como garantia a empréstimos e participação em investimentos.

De Soto avalia em 6,7 trilhões de dólares  o valor de mercado reprimido do conjunto dessas edificações urbanas feitas pelos pobres dos países em desenvolvimento, nos últimos quarenta anos. Na América Latina, isso corresponderia a 1,2 trilhão (6). Ele prevê que, incorporadas a um capitalismo legal e devidamente escrituradas, elas engendrariam uma significativa redistribuição de renda e dinamização da economia como um todo.  Pode-se argumentar que De Soto, ao ver nisso um caminho de acesso ao crédito, superestima as consequências econômicas e o potencial de “capitalismo popular” que poderá ser liberado por esse processo no Brasil, onde o acesso ao crédito bancário esbarra em altíssimas taxas de juros, que já criaram uma cultura refratária a tomar ou conceder empréstimos e onde a casa própria, quando único imóvel da família, não pode ser alienada por hipoteca. 

De qualquer maneira, trazer para a esfera da legalidade a cidade informal tem vantagens econômicas evidentes, não só para os pobres como para o conjunto da sociedade, sempre que se consiga criar mecanismos de inibição e repressão que garantam que a regularização de favelas e loteamentos e novas normas edilícias, mais realistas, não servirão para estimular novas ocupações, parcelamentos e construções irregulares, com suas decorrências de agressão ambiental. Por isso deve existir um componente repressivo, eficaz e fulminante para complementar essas novas políticas de legalização da informalidade coibindo, no nascedouro, subsequentes processos de favelização. A combinação de dois movimentos aparentemente contraditórios não é simples, mas é o caminho para uma cidade una e integrada.

Atingir o objetivo de uma cidade sustentável não é uma meta utópica: depende de uma série de ações perfeitamente alcançáveis, conquanto algumas difíceis por fortes injunções culturais, políticas e econômicas. Depende também de condicionantes de macroeconomias internacionais e nacionais: é difícil conceber cidades sustentáveis numa aguda crise econômico-social, com desemprego em massa, recessão, etc. Por outro lado, o fator violência urbana — hoje o problema mais terrível com o qual se defrontam as cidades — tem uma influência desagregadora e entrópica imensa.

Por outro lado, ações de gestão urbana que promovam cidades sustentáveis contribuem de forma cumulativamente positiva para economias local, regional, nacional e global e criam uma situação mais favorável no combate à violência e à corrupção. A saída, a médio e a longo prazo, está no que se conseguir fazer hoje no sistema educacional, sobretudo na educação infantil, por um lado, e, por outro, no ensino médio, com programas focados nos adolescentes em idade de risco. Muito também vai depender, no futuro, da adoção de uma estratégia alternativa, menos estúpida, para lidar com o problema das drogas, trazendo-o para o campo da saúde pública e retirando-o do contexto da economia e das guerras urbanas.  

De qualquer maneira, ressalvados todos esses problemas, a ecologia urbana hoje apresenta caminhos bastante claros. As tarefas podem ser gigantescas mas, pelo menos, estão evidentes. Nenhuma das múltiplas soluções de implementação — necessárias para a sustentabilidade urbana e aqui mencionadas — é meramente teórica ou abstrata. Todas já passaram por algum tipo de teste prático, de protótipo, de experiência piloto em algum lugar. A dificuldade está em fazer convergir todo esse acervo de boas práticas e aplicá-lo na escala necessária. O desafio da ecologia urbana é enfrentar a megaescala. (Julho de 2003.)


NOTAS DE LEITURA

SPIRN, Anne Whinston. The granite garden: urban nature and human design. New York: Basic Books, 1984. 334 p. 

Um fundamento do ecourbanismo. Spirn (na contracapa temos uma recomendação de Jacobs), professora de paisagismo e planejamento regional da Universidade da Pensilvânia, conseguiu explicar de forma magistral, nesse livro, a relação cidade/natureza, o conceito de que não são dois entes separados, de que a cidade não representa uma não natureza, mas que forma, em conjunto, para o bem ou o mal, dependendo de como a cidade é construída, uma nova síntese simbiótica. O livro é também um manual prático de leitura indispensável para qualquer gestor ambiental urbano. 

ENGWITCH, David. Towards an eco-city: calming the traffic. Sydney: Envirobook, 1992. 190 p. 

Engwicht, um australiano de Briwsbane, faz uma das mais demolidoras críticas à cultura rodoviarista e seus efeitos sobre o tecido urbano e o cotidiano das pessoas. Estuda as cidades como um ecossistema complexo e as razões de sua irresistível atração sobre o mundo rural e a urbanização como um processo movido pelo desejo de acessar as numerosas e únicas oportunidades que esse ecossistema oferece. 

  1. SIRKIS, Alfredo. Ecologia urbana e poder local. Rio de Janeiro:Ondazul, 1999. 314 p.

  1. SPIRN, Anne Whiston. The granite garden: urban nature and human design. New York: Basic Books, 1984. 334 p.

  1. JACOB, Jane. The death and life of great american cities. New York: Vintage Books, 1961. 458 p.

  1. FRANCO,Maria Assunção Ribeiro. Desenho ambiental: uma introdução à arquiteturada paisagem com o paradigma ecológico. São Paulo: Annablume, 1997.  224 p.

  1. ENGWITCH, David. Towards an eco-city: calming the traffic. Sydney: Envirobook, 1992. 190 p.

  1. DE SOTTO,Hernando. O mistério do capital. Rio de Janeiro: Record, 2001. 306 p.

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