16/02/2020

20 anos depois do acidente de petróleo na baia da Guanabara, a realidade do Mangue Vivo

(trecho adaptado do Descarbonário meu proximo livro a ser lançado em maio: )

O famoso Biguá...
Recentemente tivemos o vigésimo aniversário do grande derramamento de óleo na baia da Guanabara por parte da Petrobras. Foi, em janeiro de 2000perto da refinaria Duque de Caxias.  Uma parte considerável dos fundos da baía foi coberta por uma enorme mancha de óleo. As praias da região, já bastante poluídas,  ficaram cheiras manchas do que parecia um piche negro e pastoso. A ilha de Paquetá foi duramente atingida. Os peixes começaram a morrer em massa e as fotos dos biguás, agonizantes, asas cobertos de óleo,  correram o mundo. 

 Não chegou a ocorrer o que antecipou o jornal francês Le Monde, numa monumental e alarmista “barriga”: La maré noire de la baie de Rio menace Copacabana(A maré negra da baía do Rio ameaça Copacabana). A mancha, contida na baía por barreiras flutuantes,   nunca chegou de fato a ameaçar as praias oceânicas do Rio ou de Niterói mas o acidente foi certamente o mais grave da sofrida história da baía e um dos piores do país em todos os tempos.

 Foi também um momento de mobilização da sociedade civil e da imprensa e resultou num raro surto de voluntariado: milhares de pessoas se ofereceram para trabalhar na limpeza das praias e, particularmente, na tentativa de salvar a fauna empesteada de óleo. Jovens de máscara, luvas, balde e escovão, tentavam limpar o petróleo das asas dos biguás e outras aves que saltitavam em agonia na areia sem conseguir mais voar. 

 O movimento ambientalista se mobilizou em protestos cujo alvo era logicamente a Petrobras acusada de falta de cuidados e de planejamento. Aqui no Rio de Janeiro fizemos diversas. Uma delas foi o “abraço” à praia de Ramos.  A Petrobras, na época presidida por Phillipe Reichstul,  de forma inédita, abriu-se para um diálogo com os ambientalistas. Na condição de vice-presidente executivo da Ondazul --o presidente, na época,  era o Gilberto Gil--  participei de várias dessas reuniões.  Do lado da empresa me recordo dos dois principais interlocutores: Rodolfo Landim, que depois fez carreira na iniciativa privada,  e Lia Blower. 




Protesto na Praia de Ramos, da esquerda:  André Correa (que depois construiria o piscinão), eu e Rubem César Fernandes
 Uma parte dos ambientalistas queria apenas “marcar posição” e brigar.  Outros, nos quais me incluí, fazer com que a empresa fizesse uma profunda revisão de seus procedimentos de segurança, desse a maior transparência as suas ações e fizesse uma revisão de sua própria natureza primordial: deixar de se ver apenas como uma empresa de petróleo, passar a se considerar como uma empresa de energia. 

 Embora naquela época alguns passos tímidos tenham sido dados na direção desta última preocupação, com o passar dos anos  não se pode dizer que ela tenha se consagrado. Já nos procedimentos de segurança, alerta  houve, sem dúvida algum bastante progresso. A Petrobras tronou-se mais segura do que no início dos anos 2000. Inevitavelmente,  abriu-se uma outra discussão, a da compensação: a empresa deveria recuperar o ecossistema e de alguma forma indenizar população atingida: pescadores, catadores de caranguejo, moradores dos fundos da baía e de Paquetá. 

  Nessa época realizei um voo de helicóptero sobre a região dos fundos da baía da Guanabara: da Refinaria Duque de Caxias, a  Reduc, de Jardim Gramacho, que acaba de ser reconvertido de lixão para aterro controlado e em volta do qual iniciava-se um projeto de recuperação de mangue, de Magé, o município mais pobre da região,  e de Guapimirim onde subiste ainda um exuberante manguezal protegido por uma unidade de conservação ambiental. 

 Ao sobrevoar Magé pedi ao piloto para circular em volta de duas áreas quem me chamaram atenção.  A da antiga estação da ferrovia que ia até Petrópolis, utilizada por D.João VI para ir ao Palácio Rio Negro –continuava em pé embora o seu píer metálico, junto à praia, estivesse totalmente degradado--  e da praia de Mauá, mais na direção da Reduc e de Jardim Gramacho. 

 A praia de Mauá me chamou atenção pela quantidade inimaginável de lixo. Era o ponto onde as correntes dos fundos da baía carreavam em maior quantidade o que naquela linguagem meio pedante dos técnicos denominam o “lixo sobrenadante”: centenas de milhares de garrafas PET, sacos plásticos, pneus, artefatos de madeira de todo tipo, roupas, sapatos, geladeiras –não as imaginava capazes de flutuar--  bonecas, brinquedos quebrados,  penicos e tudo mais que se possa imaginar. A praia era um vazadouro natural, seus garis, as correntes da baía.  Mesmo sobrevoando a algumas centenas de metros de altura era algo que chamava atenção e indignava. A oito anos da conferência Rio 92 e oitocentos milhões de reais mais tarde,  esse era o saldo do PDBG, o programa de despoluição da baía da Guanabara, anunciado com pompa e circunstância logo após a Conferência quando o governo do estado obtivera financiamentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do banco japonês JBIC para um ambicioso programa destinado a recuperar a baía. 


    Praia de Mauá, Magé, final de 2000, época do derramamento de petróleo.
   Havia não só esse lixo na superfície mas camadas deles enterradas...

 O programa, gerido no estilo tradicional, centralizado, pelo governo estadual e pela CEDAE, fora concebido na forma de grandes obras: estações de tratamento, elevatórias, redes de esgoto, usinas de reciclagem de lixo e, é bem verdade, um programa de educação ambiental que gerou alguns frutos ainda que tenha ensejado  muito clientelismo. A parte “obrera”, no entanto, foi quase uma catástrofe. Parte das usinas de tratamento nunca funcionou direito, outras simplesmente não recebiam esgoto ou recebiam muito aquém de sua capacidade pela falta de redes coletoras (a contrapartida financeira da CEDAE). Em alguns lugarejos a rede afinal fora construída mas a companhia recusara-se a fazer as conexões domiciliares dizendo que eram responsabilidade do “particular”, ou seja os moradores pobres da baixada deveriam eles próprios conectar suas privadas à rede que passava debaixo da rua. A empresa fazê-lo seria nessa ótica um “mau uso do dinheiro público” em benefício de “particulares”.  

 De fato, a poluição na baía, medida regularmente, apresentava melhorias praticamente insignificantes. Houve alguma redução da poluição oriunda de fontes industriais o que naquele momento fora comprometido seriamente pelo acidente de petróleo. No fracasso do PDBG nada despontava tão grave e grotesco quando o problema do lixo. De certa forma o lixo na baía é pior do que os esgotos. Estes,  mal que bem acabam se diluindo no vasto corpo d’agua e, como se diz: “o que os olhos não veem o coração não sente” e o nariz só sente quando estão mais concentrados na fozes dos rios e canais. Já o lixo fica onipresente (e “sobrenadante”) contribuindo a todo momento com essa triste sensação de esculhambação que estimula os incautos e deseducados a jogar mais e mais objetos de variadíssima gama no que transformou-se nesse grande lixão aquático: a baía da Guanabara. 

 Não houve por parte do Estado nenhuma articulação digna do nome com as prefeituras dos municípios em volta da baía, a quem cabe a responsabilidade de coletar e dar destino final  ao lixo. Também não houve trabalho com as comunidades de favelas às margens desses rios e canais  e da própria baía, fontes principais desses resíduos que teria sido possível recolher, na fonte,  evitando que fossem jogados n’água indo terminar na baía e, na maior parte, nos seus fundos, onde se destacava, a praia de Mauá que eu estava sobrevoando.

 Quando o piloto do helicóptero subiu mais um pouco foi possível entender aquela praia no seu contexto ecossistêmico: no passado tudo aquilo fora um imenso manguezal, com algumas praias de areia branca, de Guapimirim até Duque de Caxias. Em alguns pontos o mangue ainda sobrevivia mas ali o processo de degradação fora extremo. Parte do manguezal fora desmatado para queima como carvão vegetal e parte fora fortemente atingido por uma praga que desfolha e seca o mangue. Privadas da proteção do manguezal a praia e a área adjacentes foram invadidas pelo lixo. Esse lixo não se limitava aos montões de cacarecos que  eu avistava desde o helicóptero. Havia, invisíveis,  camadas sucessivas dele enterradas: isso no futuro seria o maior obstáculo para a recuperação da área.

 No momento em que o helicóptero fez a volta, pensei com meus botões: “vamos recuperar esse negócio aí embaixo porque se funcionar ali é prova que conseguimos recuperar qualquer outro ecossistema”. Até a volta ao heliporto da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, o projeto Mangue Vivofoi tomando corpo mentalmente e eu estava ansioso para compartilhar da ideia com os demais colaboradores do Ondazul e colocar no papel a versão original do projeto para apresenta-lo à Petrobras que assim financiaria a recuperação do ponto mais degradado da baía que recentemente tanto poluíra. 

 A distância entre a ideia de um projeto e sua viabilização é complexa e tortuosa e passa por uma realidade cheia de complicações, obstáculos e armadilhas burocráticas e políticas.  

 Toda essa articulação estava a meio caminho quando, em dezembro de 2000, me afastei da vice-presidência executiva da  Ondazul --permaneceria ainda um certo tempo em um dos seus conselhos--  para assumir a secretaria de urbanismo da prefeitura do Rio de Janeiro junto com a presidência do Instituto Pereira Passos(IPP).   Passei o bastão para uma equipe liderada pela Tatiana Wehb que continuou a negociar o projeto que, no entanto,  nunca deixei de acompanhar,  apoiar  e, ocasionalmente, ajudar a sobreviver diante de muitos percalços.  

  O projeto que começou a ser executado em meados de 2001 teve uma primeira fase tumultuada do ponto de vista burocrático e dificílima in loco. Do lado institucional um resumo do imbróglio: embora negociado com o ministério do Meio Ambiente o projeto teria que ser executado por repasse de recursos oriundos da multa e sob gestão do IBAMA. Os técnicos do órgão ressentiam profundamente o fato de grande parte desses recursos terem sidos alocados para serem executados por entidades ambientalistas e por prefeituras. A má vontade e o boicote tornaram-se uma marca desde primeiro momento, por mais que a cúpula do órgão em Brasília desejasse cumprir a vontade do ministro.  Depois na gestão do PT passou a ser visto como “da gestão anterior”e boicotado mais ainda. 


Abrindo os drenos...

     Assim estava...
   Com parte do mangue recuperado, da esquerda: Rogério Rocco, eu, Adeimantos Silva, Erian Osório e Gilberto Gil

  As dificuldades técnicas eram imensas. A primeira ação fora naturalmente limpar a praia de todo aquele lixo e depois construir uma cerca junto à baía para impedi-lo de continuar se acumulando aí trazido pela maré. Foi quando começou-se a descobrir que o lixo na praia de Mauá não era só aquele da superfície mas que havia camadas sucessivas enterradas e isso dificultava que as mudas de mangue, os “propágulos”, vingassem.  Havia também dúvidas quanto à estabelecer a largura e o espaçamento dos drenos, cuja abertura foi a primeira ação física visível sobre a praia livre das toneladas de lixo que haviam se acumulado na superfície. Foi quando os drenos começaram a ser cavados que revelou-se o lixo subterrâneo. 

Nessa mesma época uma ressaca poderosa destruiu a cerca e boa parte das mudas plantadas e drenos abertos. Nessas alturas o  responsável técnico era o ambientalista Rogério Rocco que, no entanto,  passava boa parte do tempo a administrar a difícil relação com o IBAMA. Não obstante,  no final de 2002, o reflorestamento na praia da Mauá apresentava os primeiros sinais de sucesso, com todo lixo enterrado, ressaca e dificuldades financeiras,  o mangue começava a brotar na área mais próxima à antena de rádio do lado esquerdo da praia. Um viveiro de mudas fora constituído. Tudo aprecia entrar nos eixos graças a essa facilidade notável que o mangue tem de rebrotar mesmo nas condições mais adversas. 

  Eu assistia de longe os abnegados  batalhadores da entidade ambientalista na qual atuara de 1996 a 2000 submetidos a esse processo kafquiano no IBAMA em relação à verba de compensação do desastre na baía. O projeto que eu idealizara na  época do derramamento de petróleo ser condenado a literalmente morrer na praia. Prometi ajuda-los e não deixar que o projeto Mangue Vivo perecer de morte matada pela obtusa insensibilidade desses burocratas e pela mesquinha retaliação política de segundo e terceiro escalão houve um longo litígio, finalmente solucionado por uma decisão cabal do Tribunal de Contas da União em prol do projeto.

 A salvação material deu-se num outro voo de helicóptero. Estava fazendo um sobrevoo da área portuária do Rio de Janeiro onde articulava, como secretario de urbanismo, os primórdios do projeto de revitalização daquela zona. Ao mesmo tempo que desenvolvia no Instituto Pereira Passos dezoito projetos de infraestrutura  que posteriormente foram em boa parte executados no programa Porto Maravilha, eu tentava convencer empresários a investirem na área e levava-os em passeios de helicóptero com meu amigo Rogério Zilberzstein (1)  da RJZ que vinha com o dono da Cyrela,  Eli Horn.  Depois de nossa volta sobre o porto do Rio, perguntei lhe, têm um momentinho para lhe mostrar-lhes algo? 

  Voamos para Magé e mostrei a praia de Mauá. Lá estavam bem visíveis os drenos e a parte do mangue já plantada e recuperada, vimos trabalhando na enxada os dois solitários reflorestadores que o projeto ainda conseguia sustentar, Deus sabe como. Desandei com um discurso sobre a importância dos manguezais,  sobre como seria lindo recompor tudo aquilo que fora degradado no último século de agressão à baía. Expliquei como associar-se àquele tipo de projeto seria  importante para a imagem de uma empresa, coisa e tal. Alguns anos mais tarde consegui o apoio da então Plarcon e da CRT, a gestora da rodovia Rio-Teresópolis, cujo posto de pedágio fica ao lado da entrada para Magé. Depois r3ecebeu apoio do Funbio. Assim o projeto  sobreviveu e continuou avançando cada vez mais pela praia. Hoje são 60 herctares de mangue reflorestado e tudo pronto para implantar-se a infraestrutura de parque, com cerca, sede, passarela suspensa e torre de observação, que, no momento tem dificuldades com a situação “política” em Magé, município paupérrimo e dominado por milícias. 

     Mudas que crescem

O viveiro que serve para outras regiões também.

 Voltando ao mangue. Hoje, vinte anos depois, temos todos esses pés de mangue altos e frondosos, cheios de passarinhos. Pelo chão, antes infestado de lixo, pululam milhares de caranguejos. Olho para toda aquela massa verde, meus pés dentro de botas afundando na lama, e me lembro da discussão um técnico do IBAMA --esse, jovem, do bem--  numa das raras vistorias que o órgão realizou, penso que essa foi nos idos de 2006. 

 Eu vinha fazendo uma série de visitas a Magé, uma delas acompanhado do ex-presidente da Ondazul, Gilberto Gil, então ministro da cultura. Havia um monte de jornalistas e cinegrafistas em volta. Plantamos uns pés de mangue. Naquela época o projeto realizava periodicamente mutirões de plantio de propágulos com estudantes de escolas e funcionários de empresas.  

Numa das visitas fomos tirar fotos de Antonia Erian, a engenheira florestal que coordenava tecnicamente o projeto naquela fase. La estava o Adeimantus, o líder dos reflorestadores, uma figura muito especial que se transformou num ativista ambiental de primeira linha a partir de sua prática de reflorestar e zelar pela área, o “seu” Zé e outros tantos.  Lá estava o viveiro que vai se ampliando gradualmente e já fornece mudas para outras áreas. 

Aí entrei numa discussão com o engenheiro florestal, do IBAMA, foi uma das raras vezes que o órgão foi visitar o projeto.  Veja isso, veja aquilo, conseguimos, né? Ele me olhou meio condescendente,  fez um muxoxo e argumentou: “é... mas tecnicamente o que vocês fizeram tá tudo errado. Não tem a menor racionalidade plantar mangue numa área dessas! Demora muito e sai muito caro. Por que vocês escolheram logo uma área tão difícil, a pior da baía? Deviam ter escolhido outra mais favorável.” 

   Fiquei olhando para ele meio desconcertado e naquele momento percebi exatamente o que ele não estava entendendo com seu olhar supostamente técnico. Respondi na lata: “mas,  cara, é precisamente por isso! Porque era o mais difícil! Escolhemos a área mais degradada do fundo da baía de Guanabara, desmatada por catadores de carvão vegetal, dizimada por uma praga, afetada pelo derramamento de petróleo e coberta de lixo, com camadas de lixo enterradas, foi por isso, precisamente: porque era foda,  porque nossa missão como ambientalistas é recompor um ecossistema degradado e não buscar a área mais favorável para o plantio.  Não estamos aqui fazendo agricultura, nem floricultura, nem reflorestamento econômico: tratamos de recuperação ambiental, lato senso”.  Ele ficou quieto, pensativo.  Vai ver que entendeu, pensei.






[1]Faço questão de aqui render homenagem a Rogério Zilberstein esse querido amigo, brilhante empreendedor e ótimo ser humano que tragicamente pôs fim a própria vida, em outubro de 2018, na véspera da malfadada eleição. 

 Galeria de Fotos

Nenhum comentário:

Postar um comentário