04/02/2017

O abraço


O abraço de Lula e Fernando Henrique, no luto de dona Marisa --e que já havia acontecido no de Ruth Cardoso--   parece corroborar com aquela velha máxima de: “a esquerda só se une na cadeia”, ou no luto, se pode acrescentar. Alguns vão reagir diante dos dois e dizer: que esquerda??? O fato é que ambos representaram duas vertentes da socialdemocracia no Brasil e que sua divisão, desde os primórdios, foi um elemento muito negativo na construção do quadro político que ora explode.

 O fenômeno foi bem identificado por FH quando disse certa feita: “disputamos com o PT para ver quem comandará o atraso”. Com efeito, no regime de presidencialismo de coalizão, o PSDB sob feroz oposição do  PT, antes e depois do Plano Real,  aliou-se para governar com o o PFL, hoje Democratas e, ocasionalmente, com o PMDB. Quando lhe coube governar, o PT colocou no  balaio o PP malufista, o PTB, de Roberto Jéferson e uma profusão de nanicos, além dos mais tradicionais de esquerda. O PT definira como estratégia para chegar ao poder um combate sem tréguas com a constante  satanização de “FHC” e sua caracterização como "direita". Durante oito anos não houve viagem ou visita que ele fizesse que não encontrasse aquele grupinho de petistas vaiando, xingando e hostilizando-o.

No âmbito pessoal Lula o atacava violentamente passando por cima da resistência conjunta de ambos à ditadura, nos anos 70 e início dos 80 e da amizade  entre eles de então. Lula gostava de frequentar sítios, já na época, e FH costumava emprestar-lhe o seu e  de Ruth. Os tucanos vieram a compor uma socialdemocracia de corte mais social liberal,  o PT uma mais clássica, de base sindicalista e com uma pletora de tendências mais radicais. 

 O espírito de corpo petista acabou impregnado por uma pulsão leninista. Somos o partido do proletariado, temos um direito natural, histórico, ao poder. É um tipo de atitude que foi expressa, depois,  na sua plenitude pelo chavismo. Lula nunca quis sair do quadro constitucional mas dentro dele faria “o diabo” (dixit Dilma) para impedir uma alternância. Isso porque o direito do PT a governar era como aquele dos reis,  só que  concedido não por Deus mas pela história, pela meta final gloriosa do socialismo.

 Foi daí que veio o caldo de cultivo do tipo de corrupção que primeiro tornou-se enorme. Ela transcendeu a finança “logística” do partido, aquela destinada a faze-lo se perpetuar no poder, ganhando eleições com um volume  acachapante de recursos e instrumentos, para para cair também naquela mais esfera tradicional do enriquecimento pessoal de certos integrantes da “companheirada”,  mal influenciados pelos novos parceiros da política tradicional,  clientelista, assistencialista,  compradora de votos.

Realinhamento?  

 Em diversas ocasiões propugnamos –sem muito acreditar na sua viabilidade-- um “realinhamento histórico”, entre petistas, tucanos e verdes. Ser tivesse acaso existido teria talvez evitado toda essa tragédia da deriva do PT, a partir do segundo governo de Lula. Talvez tivesse viabilizado uma reforma política,  uma política de sustentabilidade e evitado uma promiscuidade maior com a oligarquia mais tradicional da política brasileira com sua enorme capacidade de emular todos seus truques de mau caminho. Ou talvez não. Certamente teria evitado alguns erros catastróficos na economia.

 O primeiro governo Lula expressou, sem dizer,  algumas políticas possíveis dessa aliança sem ela. Aquele governo, como então notava meu amigo Gilberto Gil, foi,  em muitos aspectos, uma continuação tonificada do de FH, salvo na questão das privatizações as quais ele não chegou a tentar  rever. 

 Um “realinhamento histórico”, daquela forma, das vertentes inimigas da social democracia teria  facilitado a emergência de uma direita liberal, civilizada, que faz falta ao Brasil. Com todas essas alianças fisiológicas e o grande poder de cooptação do governo,  a direita liberal se pulverizou.   Agora periga ser suplantada pelo renascimento de uma direita popular hidrófoba que é uma anti-esquerda exaltada. Como num  jogo de espelhos. 

 Petismo e o anti-petismo raivoso nas redes sociais,  tribalização da sociedade,  escalada do discurso odiento –petistas encrespando  visitantes no hospital Sírio libanês e anti-petistas comemorando a tragédia de dona Marisa no Watts App--  tudo isso agoura mal nosso futuro junto com  esse clima inquisitorial que corre o risco de comprometer a grande contribuição positiva da Lava Jato na desmontagem dos mega esquemas de corrupção das entranhas do Estado.

 Não saberemos ao certo qual foi a influência no AVC de dona Marisa dos procedimentos investigatórios contra ela, notadamente, no caso do apartamento em Guarujá que, desde o início,  me pareceu uma senhora “forçação de barra”. Uma coisa seria se o MP conseguisse  comprovar que Lula comandava e operava o “petrolão”. Até onde sei não conseguiram fazer essa demonstração (e contra a Dilma também não). Já o  apartamento em Guarujá e o sítio foram simplesmente a continuidade de um  tipo de relação que Lula sempre teve, ao longo de sua carreira,  com  pessoas  ricas que gostavam dele, o admiravam. Embora criticável é um tipo de relação bastante corriqueiro entre grandes personalidades políticas pelo mundo afora, posso citar diversos exemplos de consagrados estadistas, entre eles Winston Churchill..  

  Podem dizer que essa relação de Lula com os “burgueses” era eticamente inaceitável. Que o líder dos explorados, dos humildes não podia se beneficiar de “mordomias” como a um pequeno sítio com laguinho e pedalinhos. Que haveria conflito de interesses em receber favores de donos de empreiteiras, pagamentos polpudos por palestras, contribuições para transladar  arquivos ou tocar seu Instituto ou prêmios por intermediar negócios em Cuba ou Angola. Pode haver motivos para criticar, questionar, cobrar politicamente, à luz do discurso moralista, lava-mais-branco, do PT antes de chegar ao governo. Mas não parece claramente constituir crime nem justificar o tipo de assédio jurídico policial e midiático do qual o ex-presidente foi alvo e que se estendeu a sua esposa.

 A impressão política que tenho é que esse assédio vai contribuir para uma vitimização de Lula que poderá assim eludir confortavelmente suas responsabilidades políticas pelos graves erros do PT. Era bom os heróis do Lava Jato e seus apologistas incondicionais na mídia refletirem sobre a lei das consequências inesperadas.

  Há quem veja neles a nova força política emergente que irá passar o Brasil a limpo. Já ouvi isso mais de uma vez. Numa democracia se quiserem ser força política e "passar o país politicamente a limpo"  terão que entrar na dita cuja.  Nela mesmo, na  política.  Hoje eles são funcionários de um poder da República e precisam ser isentos,  zelar pelas leis e proteger as garantias individuais e o devido processo, inclusive no que diz respeito à presunção de inocência que tomou chá de sumiço. Também seria bom se mostrassem um mínimo  de humanidade.  Quanto à política brasileira,  continuará apanágio dos eleitos por piores que sejam. Não chegaram de Marte, foram eleitos. Também o será a próxima leva. 

 Desculpem a previsão pessimista, se houvesse eleições amanhã,  a composição das casas legislativas não seria muito diferente. A renovação, possivelmente mais à direita,  se daria naqueles 20% escolhidos pelos votos politizados da classe média urbana. Os 80%,  eleitos nas várias modalidades de clientelismo e compra direta ou indireta de votos, continuaria com os mesmos personagens ou outros, análogos.

  Nem o PT nem o PSDB irão desaparecer do quadro politico brasileiro e é fundamental que ambos se renovem. O mesmo valeria para o PV também fagocitado pela pior política tradicional e outros partidos que tem ou tiveram alguma referência ideológico-programática, ainda que oca.  Um bom passo para essa renovação seria o de se parar de satanizar o adversário e se imaginar possuídos de um “direito histórico” ao governo e  dispostos a ferro e fogo a alternância.


 O abraço dois ex-presidentes pode ter sido um instante de trégua em meio a uma tragédia pessoal mas deveria ser o inicio de uma convivência política menos crispada,  de braço estendido, ajudando o país a transitar por esses tempos difíceis por todo o mundo. Negociando um pacto de transição política e econômica. Mas seria pedir demais, não é? Foi um gesto positivo, possivelmente sem grandes desdobramentos. Infelizmente. 

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