Foi francamente irônico o resultado da recente
pesquisa do Datafolha sobre a Lei de Anistia. Há uma maioria favorável a
revê-la
para poder julgar os torturadores e uma maioria, maior ainda, para rejulgar a nós, ex-guerrilheiros pelas ações que
cometemos. Por um instante me vi, com
meus 63 anos, no tribunal, respondendo pelos dois sequestros de embaixadores
que participei, com 19, que propiciaram
a libertação de 110 presos políticos, alguns eventualmente destinados à
Casa da Morte. Na época fui condenado duas vezes à prisão perpétua (com mais
trinta anos de lambuja para a encarnação subsequente) pelas auditorias
militares. Costumo dizer que daquilo tudo não me orgulho nem envergonho. No
entanto, já tive pesadelos horrendos: a organização me ordena executar o
embaixador da Suíça, Giovanni Enrico Bucher --um sujeito boa praça que não
gostava da ditadura-- porque tinham se
recusado a libertar todos nossos presos. Tenho uma pistola na mão mas não quero
me tornar um assassino. Acordo coberto de suor frio.
Graças a Deus aquilo terminou bem e nossos 70
companheiros foram mandados a Santiago do Chile porque consegui convencer nosso
comandante de então, Carlos Lamarca, a aceitar a recusa de alguns dos presos
“estratégicos” e negociar a sua substituição por outros que a ditadura Médici aceitava
soltar. Hoje vejo um sequestro desse
tipo, de um diplomata inocente, ameaçado de execução, mesmo sob uma ditadura,
um ato no limite do terrorismo, no que pese o nosso desespero de então. Em
alguns casos esse limite foi ultrapassado.
Penso no marinheiro inglês metralhado na Praça Mauá, na bomba de
Guararapes ou na execução daquele militante que queria abandonar uma das
organizações.
É possível se equiparar mesmo esse punhado de
atos criminosos à tortura generalizada, institucionalizada, sancionada desde o
nível presidencial que se abateu não apenas sobre nós, resistentes armados,
como sobre opositores sem violência, com no caso do PCB, e milhares de “simpatizantes” e outros presos
por equívoco? Claro que não, mas essa anistia “recíproca” foi resultado de uma
correlação de forças dos idos de 1979, um acordo político que permitiu a
libertação dos pesos e nossa volta do exílio.
O primeiro problema em se rever essa Lei para poder julga-los, quarenta e tantos anos depois, é a repercussão sobre outros complicados processos
de redemocratização pelo mundo afora. Frequentemente para remover um regime de
força é preciso pactuar com os que ainda ocupam o poder e ainda têm enorme
capacidade de fazer dano. O cenário sírio acontece quanto eles percebem que não têm margem de
recuo.
As torturas e execuções na África do Sul e na
Espanha não foram menores do que no Brasil --é o mínimo que se pode dizer-- mas lá a opção foi não colocar os antigos repressores
nos bancos de réus. Na África do Sul a lógica da Comissão da Verdade foi
reconstituir os fatos e obter dos responsáveis pelo odioso apartheid a confissão, não com vistas à condenação penal mas a
expiação moral e a superação conjunta de tudo aquilo. Também foram colocados na
mesa para uma catarse de superação coletiva certos episódios sangrentos dentro
da maioria negra.
Confesso senti satisfação ao ver o general Jorge
Rafael Videla terminar a vida numa prisão argentina. Penso, no entanto, que a
razão decisiva para julgar (uma parte) dos comandantes daquele regime assassino
foi o prosseguimento das conspirações militares já no período democrático, com
quarteladas durante os governos de Raul Alfonsin e Carlos Menem. No Chile
alguns poucos foram julgados mas o general Augusto Pinochet Ugarte continuou
comandando o exército por um bom tempo na transição e só sofreu embaraço
jurídico no Reino Unido, jamais no Chile. Não há uma formula única, “correta”. No que
pese o sentimento de busca de justiça das vítimas e seus familiares --que respeito profundamente, `a diferença
daqueles que querem apenas surfar politicamente na causa-- trata-se de uma
decisão jurídica, por um lado, e de uma questão
política, por outro. Juridicamente, o STF já se pronunciou a respeito.
Politicamente, vejo a revisão como contraproducente e concordo plenamente com a
presidente Dilma Rousseff quando se manifesta contraria à anulação da anistia.
Desde
os anos 80 vem prevalecendo, grosso modo, a narrativa da esquerda sobre os “anos de
chumbo”. Os verdugos dos porões do DOI CODI viveram vidas existencialmente
miseráveis. Uma parte, desproporcional, já morreu de morte morrida outros tornaram-se
criminosos comuns, bicheiros, contrabandistas. No estamento militar há um sentimento
geral de condenação àquela maquina de torturas e execuções --que acabaram
inclusive atentando fortemente contra a hierarquia militar e sujando a imagem
das Forças Armadas-- embora sem nenhuma propensão a aceitar a narrativa da
esquerda. Não iremos convencer os militares a adotar, agora, um maniqueísmo reverso ao deles, na época.
Por todo ordenamento jurídico brasileiro hoje
seria totalmente impossível --a não ser que se viesse a adotar toda uma nova legislação
de exceção— condenar esses militares de pijama, na maioria septuagenários ou
octogenários, a servir penas de prisão.
Num país onde assassinos abjetos como os que torturaram, esquartejaram e
mataram o jornalista Tim Lopes saem da prisão por “progressão de pena” em
quatro ou cinco anos, fazer um ex-general ou coronel do DOI-CODI ir para a
cadeia por crimes cometidos a mais de 40 anos é altamente improvável e
incongruente.
Qual o
risco político de coloca-los agora no banco do réus? Tendo prevalecido a nossa
narrativa, desde os anos 80, seria da
lógica jornalística agora ouvir a deles, desde o palco e holofotes que agora lhes estão sendo
propiciados. Alguns se arrependem. Qual a sinceridade disso? Há os que assumem
friamente seus crimes e aí temos a novidade, o gancho jornalístico para
difundir sua contra- narrativa: “isso mesmo, torturei, cortei dedos,
matei, joguei no rio, no mar e daí? Guerra é guerra”. Se há uma maioria de
brasileiros que fica compreensivelmente horrorizada, há uma minoria que se
identifica e sente-se reconfortada em ver, afinal, sua “verdade” difundida
agora com todas as letras. “Levanta-se a
bola” para figuras como Ulstra ou
Manhães, propicia-se farta cobertura de mídia para eles se
comunicarem com uma extrema-direita desorganizada, difusa mas real.
Ganham espaço para bulir com aquele sentimento que leva o público do primeiro Tropa de Elite --quando o Padilha ainda
não havia pago tributo ao “politicamente correto”-- a aplaudir as torturas infligidas ao
traficante com um saco plástico.
A prioridade
no Brasil em relação a tortura não é tentar, inutilmente, mediante a revisão da anistia, colocar na cadeia, um ou outro torturador do
DOI CODI, dos anos 70, mas fazer cessar aquela tortura que continua ocorrendo
hoje, agora, a todo momento, em dezenas de delegacias de roubos e furtos ou
DPOs em pontos obscuros do país contra marginais pobres e negros. Aquela velha tortura
de sempre, de antes e depois do Estado
Novo e do regime militar, quando ela foi, excepcionalmente, infligida também à classe média intelectualizada
e politizada. Nesse sentido, independente de todos os bons e altivos argumentos
e a justificada indignação de quem sofreu e gostaria de ver punidos aqueles
criminosos, a revisão da “anistia recíproca” de 1979 é um erro político cujo
maior problema é, na prática, dar uma segunda chance e propiciar um público renovado para uma narrativa que já havíamos
enterrado nos anos 80. É, no fundo, um tiro no pé.
Famosa foto de Evandro Teixeira do enterro do estudante Edson Luiz. Sou a oitava cabeça na borda direita... |
No detalhe. À direita de óculos. |
Nos "anos de chumbo", treinando.
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Estádio Nacional de Santiago, transformado em prisão |
Buenos Aires na morte de Perón. Rumo a volta dos militares. |
Escrevendo Os Carbonários em Lisboa |
Exilio:movimento pela anistia, em Lisboa |
Anistia: dia do regresso, 14 de dezembro de 1979. Carlos Minc, João Belisário e eu, recém chegados no Galeão |
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