Quase tudo pertinente já foi dito e escrito sobre Nelson Mandela nesse momento em que celebramos os 95 anos de vida do mais extraordinário estadista do século XX e as lições que nos deixa e que são universalmente válidas. A vitória mais completa de Mandela sobre o apartheid não se deu na hora de sua libertação, depois de tantos anos de masmorra, nem no momento em que o regime racista implodiu, nem no dia em que Mandela foi eleito presidente na nova nação sul-africana. Sua maior vitória foi quando foi quando ganhou os corações e mentes da minoria branca sul-africana, até mesmo de boa parte daqueles que apoiaram, sustentaram ou cometeram crimes em nome do apartheid.
É conhecida a sua política de reconciliação nacional, a ausência de qualquer revanchismo ou mesmo daquilo que seria inequivocamente de justiça diante de tantos crimes praticados. Sem dúvida legiões de torturadores e repressores do regime racista mereciam cadeia. Mas a comissão da verdade sul africana, liderada pelo arcebispo Desmond Tutu, sob orientação de Mandela, não buscou condenação penal. Buscou a verdade, a admissão dos crimes, o arrependimento e o perdão. Promoveu situações de catarse e de superação. Entraram em pauta também outras situações de violência, notadamente no interior da comunidade negra.
Não cabe ficar comparando opressões mas é evidente que o regime do apartheid cometeu crimes muito mais generalizados do que a ditadura militar no Brasil. Uma ampla maioria negra, dezenas de milhões de pessoas, tiveram seus direitos mais elementares negados. Sofreram o confinamento territorial, a discriminação cotidiana, as violências, as torturas, as execuções, os massacres que se deram numa escala muito maior do que as violações de diretos humanos aqui cometidas contra um segmento político organizado que se opunha ao regime ditatorial que tomou poder em sucessivas quarteladas que se seguiram a destituição de Jango, em 31 de março de 1964.
Penso um instante na visão estratégica abrangente do estadista Mandela que abriu mão de julgar e colocar na cadeia seus opressores do regime racista, com essa pressão atual, no Brasil, para reabrir a discussão da anistia de 1979 e seus ajustes posteriores para poder levar a julgamento um punhado de militares septuagenários ou octogenários que torturaram, executaram e fizeram desparecer presos políticos, na sua maioria (mas não totalidade) vinculados à guerrilha urbana e rural dos “anos de chumbo”.
Respeito as vítimas de tortura e aqueles que tiveram entes próximos “desaparecidos”, entendo seu sofrimento e sua determinação de buscar justiça, quarenta anos mais tarde. Respeito menos pessoas de uma outra geração e história de vida que abraçam essa exigência mais como forma de militância ou em busca de exposição na mídia. Penso que politicamente é uma ação contraproducente que tende a ser um tiro no pé.
Num país onde reina uma enorme leniência em relação a criminosos violentos --por exemplo, os torturadores, esquartejadores e assassinos de Tim Lopes, quase todos foram libertados em cinco anos, por “progressão de pena”-- julgar quarenta e tantos anos depois um general velhote de pijama dificilmente produzirá efeitos jurídicos punitivos mas politicamente tenderá a levantar a bola para uma repescagem da narrativa deles.
Militarmente derrotados nos anos 70, fomos politicamente vitoriosos nos 80. Esses anos todos predominou a narrativa “da esquerda”. Foi adotada pela mídia com algumas poucas nuances. Reabrir a disputa de narrativas, pular de volta nas velhas trincheiras de há 40 anos não faz muito sentido para o Brasil atual. Dessa situação tenderá a se beneficiar a narrativa da direita. O “gancho” jornalístico agora é buscar o que eles têm a dizer se colocados no banco dos réus.
Há um universo conservador disponível para ouvir sua narrativa e até certo ponto se identificar com ela. Longe de levar à “punição” dos torturadores seu julgamento tardio lhes proporcionará berlinda e holofotes. Constituirá uma chance de recolocar uma “polêmica” lá onde já havia uma narrativa estabelecida.
Não há propriamente uma verdade oculta a ser “descoberta”, revelada. O horror daquele tempo já foi em grande parte divulgado nos anos 80. Há alguns episódios específicos que podem ainda ser elucidados, esclarecidos mas com o sentido de quem reconstitui a história não de quem instrui processo. Haveria, de fato, espaço para uma abordagem mais ao estilo sul-africano. Desconfio até que se fosse assim muito mais expoentes do aparelho repressivo de então arrepender-se-iam publicamente. No entanto, seria necessário também que a esquerda assumisse seus próprios podres, de nenhuma maneira comparáveis aos da ditadura mas importantes de serem colocados para que o país em busca de superação de uma vez por todas de tudo aquilo tudo.
Mas isso, que de certa forma era o objetivo dos legisladores –nos quais me incluo-- que votaram a lei que deu origem à comissão, parece bastante inviável no marco de sua composição atual. Não temos nesse processo um arcebispo Desmond Tutu, muito menos um Nelson Mandela.
Nos aos 80 , fiz parte dessa luta. Morava em Moçambique, vi e senti a luta daquele povo.
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