22/12/2014

Cuba e o futuro


Passei o revellion de 2014 em Havana --minha primeira vez-- e atirei minhas flores para Iemanjá no mar do Caribe do início do Malecón.  De volta ao Rio escrevi um artigo que a Piauí não quis publicar e que acabei postando nesse blog. Ao dar-se a corajosa decisão de Obama de mudar a política de 53 anos de hostilidade dentro dos limites de seus poderes penso ser interessante reler algumas das coisas que escrevi em janeiro:

"Economicamente o potencial de Cuba é simplesmente extraordinário se, de alguma maneira,  conseguir formatar-se para receber investimentos sobretudo dos cubanos radicados nos EUA. Nem tanto de grandes empresas quanto de uma multidão de pequenos e médios investidores potenciais dentre aqueles cubanos que fizeram fortuna nos Estados Unidos,  seus filhos e netos. Para tanto vai ser necessária a reconciliação. Hoje ela está ficando menos difícil, na medida em que na diáspora vão envelhecendo e minguando os líderes linha dura  –que frequentemente apoiaram o terrorismo—  e vão emergindo, sobretudo no meio empresarial, outros mais pragmáticos e abertos ao diálogo. Mas é sobretudo do lado do regime que serão necessários gestos práticos de apaziguamento, acolhida e conciliação. Esse é um processo já em curso de maneira incipiente e discreta.

  Se circunstâncias políticas o permitirem, existe uma abundante disponibilidade de investimento em condições inacreditavelmente favoráveis: proximidade geográfica, mão de obra abundante a custo reduzido,  uma população bem instruída, segurança,  belezas naturais fantásticas e uma capital, Havana,  que é um paraíso cenográfico em potencial.  

 O grande obstáculo é esse  clinch de cinco décadas entre dois pugilistas cansados, essa relação passional cubano-norte-americana, qual dupla barraqueira divorciada, que ama se detestar com todas as fibras do coração no que pese o passado promiscuamente próximo do qual não há como fugir.  Em Havana, junto à cidade velha, avistamos essa réplica quase perfeita do Capitólio de Washington  que está sendo orgulhosamente restaurada. Pelos cantos baldios da cidade há jovens jogando baseball. Praticamente todo mundo  é fluente em inglês e  capaz de passar horas falando  mal  (ou bem) dos yanquis e de suas coisas.

 Nesse sentido gestos simbólicos, “subjetivos”,   como o aperto de mão de Obama com Raul Castro têm um efeito potencial maior do que parecem. Não chego a entender muito bem porque Obama, já no seu segundo mandato, sem tanta ameaça dos republicanos cubano-americanos da Flórida,  não  anula as sanções econômicas que dependam de ato presidencial –outras condicionadas a decisões do Congresso, são mais  difíceis— e não liberta os cinco agentes cubanos presos na Flórida como “espiões”. Poderia anistia-los e, até,   incluir no pacote, à guisa de compensação,  o espião israelense Jonathan Pollard o que até ajudaria os esforços de John Kerry para levar o governo de Netanyahu a ceder alguma coisa aos palestinos. 

 Exigir “concessões politicas”  prévias de Raul Castro  não parece ser o caminho mais inteligente de para conseguir uma maior democratização na relação do partido/estado com a sociedade cubana. É mais plausível imaginar que ela resultará de uma situação onde o empreendedorismo floresça, onde a economia melhore e deixe de ser exclusivamente dominada pelo poder político com o surgimento de polos plurais de interesses dentro do sistema. A diversidade econômica tende a estimular a política embora não de uma forma automática ou linear.

 Um dos mais evidentes dilemas do regime, a curto prazo, é o que fazer com a internet. Até agora a resposta tem sido dificultar ao máximo o acesso. Mesmo para os turistas estrangeiros nos hotéis praticamente vedados aos cubanos é uma dificuldade absurda. Imagine-se então para o cidadão cubano comum! Alguns como a blogueira opositora Yoani Sanches dão seu jeitinho cubano mas a sociedade como um todo ainda é pre-internet e isso conquanto de alguma forma proteja o regime representa um fator de atraso gigantesco para o país como um todo.  O chineses lidam com esse assunto de forma contraditória: permitem a instalação da base tecnológica e do acesso e instituem um esquema de censura e bloqueio de certos conteúdos mediante um controle gigantesco “a grande muralha” mas, ao mesmo tempo, toleram e até tentam tirar partido do weibo o twitter chinês, bastante crítico e contestador dentro de certos limites. Essa questão será uma das mais cruciais a ser observada no futuro imediato, em Cuba.  No caso da telefonia celular a tecnologia já foi absorvida e implementada e funciona razoavelmente bem, inclusive o roaming.

 O gradualismo com que as tímidas reformas econômicas vêm se dando apresenta certas vantagens pouco evidentes aos adeptos de “terapias de choque” do estilo russo e leste europeu. O dilema de fundo cubano não é mais “se” economia de mercado mas “que” economia de mercado. A grande discussão em Cuba provavelmente girará em torno da sustentabilidade social e ambiental dessa nova economia por vir. Simplificando metaforicamente: a opção futura será entre virar uma mega Costa Rica ou um hiper  Panamá.

  Costa Rica fez sua revolução, em 1948,  liderada por Don Pepe Figueres. Derrubou a oligarquia e a burguesia “compradora”, nacionalizou os bancos mas instituiu um regime democrático exemplar –embora cercado por ditaduras de todos os lados-- e soube administrar melhor sua relação com os EUA. No que pese ter encampado a famosa United Fruit, La Frutera, nunca se aproximou da URSS e preservou boas relações com os democratas norte-americanos. Pepe Figueres aboliu o exército --o seu, o revolucionário!--   separou os poderes da república garantindo um judiciário independente e priorizou obsessivamente a educação. A Costa Rica é hoje de longe o país mais próspero de melhor IDH da região com uma população majoritariamente de classe média. Cuba poderia ser mais. Tem uma natureza  quase tão exuberante, já possui uma indústria turística considerável que poderia ganhar muito em escala e em qualidade. Sua população é bastante instruída com nichos de excelência.  Como atratividade urbana não há comparação possível entre San José --uma cidade razoavelmente sem graça--  e Havana, simplesmente magnífica.  

 Sua história política e econômica está fisicamente plasmada na sua arquitetura. Havana parou de crescer no início dos anos 60 quando se deu o rompimento da revolução com os EUA e a partida da burguesia local e, depois, da maior parte da classe média. Havana era uma cidade cosmopolita que havia recebido na primeira metade do século XX muito mais investimento que qualquer outra da região. Possuía uma arquitetura de qualidade, por sobre o tradicional urbanismo hispano e um  patrimônio considerável herdado da era colonial.  Hoje Havana é uma bela cidade dos anos 50 completamente deteriorada. Os edifícios estatizados deixaram de ser conservados e aparentemente não há nem uma elementar organização condominial para mantê-los. Esse desapego surpreendentemente se estende ao espaço público:  muito lixo atirado na rua o que é constrangedor haja vista a onipresente organização territorial do regime, nos  bairros,  através  dos  CDR (comitês de defesa da revolução) que para além de bisbilhotar a vida das pessoas poderiam bem mobiliza-las contra fazer das ruas lixeira.  Dentre o casario dos antigos bairros nobres e de classe media --que lembram de certa forma os jardins paulistanos--  uma boa parte das casas está ainda abandonada. Noutras se alojam instituições públicas diversas que pouco as conservam. Há  muitos pequenos prédios art deco gênero Miami Beach também muito deteriorados.

  Havana possui, é certo,  um amplo e consistente programa público de restauro, reconstrução e retrofiting em curso, sobretudo na velha Havana e ao longo do Malecón mas dada a amplitude da degradação a escala do projeto conquanto considerável ainda representa uma proporção relativamente pequena das belas edificações decaídas. E fica no ar a pergunta: com funcionará, depois,  a conservação dos prédios e casas restaurados?   No entanto,  se imaginarmos esse trabalho com um aporte massivo de investimento numa escala futura muito maior podemos vislumbrar uma cidade inteira esplendidamente restaurada, única no mundo, uma imensa Cartagena.

 Demandará grande tirocínio na estruturação de uma nova economia urbana fazer com que abundantes capitais fluam para o restauro e a revitalização e não simplesmente para uma “renovação urbana” de tipo especulativo com quarteirões inteiros demolidos para dar lugar ao lixo arquitetônico envidraçado que vi dias mais tarde, ao deixar Cuba, na cidade do Panamá. Uma inquestionável, embora involuntária,   realização do comunismo cubano foi a de ter evitado os horrendos ciclos arquitetônicos dos anos 60, 70 e 80.  Foi uma vitória da revolução por assim dizer, malgré elle.  Alguns prédios e equipamentos públicos, não menos horripilantes, foram erguidos aqui e ali  na era soviética. Mas felizmente foram poucos.  Nesse aspecto a penúria de capital foi providencial!

 Isso não significa que o futuro tenha que ser exclusivamente de uma cidade histórica/cenográfica restaurada.  Numa cidade sadia cabem sem dúvida os perímetros com prédios altos num zoneamento bem pensado, com  usos múltiplos e sentido urbanístico. Havana necessita de gigantescos  investimentos em infraestrutura de água, esgotos, rede elétrica, iluminação pública, comunicação a cabo e pavimentação e nisso o Brasil poderá ajudar. Seria providencial e vital que essa urbe bastante plana, bem arborizada,  de muitas largas avenidas se dotasse de uma abrangente malha cicloviária, antes da explosão automobilística que se prenuncia. Aí novamente o dilema é o da  sustentabilidade ou não do modelo urbano por vir. Pela importância que o automóvel hoje possui no imaginário e na vida prática dos cubanos o risco de uma explosão automotiva que inviabilize previamente uma mobilidade pública, coletiva e individual eficiente é muito grande.  O risco é a cidade ficar infernalmente engarrafada antes de conseguir se dotar de uma estrutura de VLT, BRT e malha cicloviária,  integradas,  com o automóvel sob controle.  

 Na cidade do Panamá pude presenciar exatamente o caos que um boom automotivo pode provocar sobre  uma cidade de porte médio sem a capacidade --nem  necessidade!--   de receber toda essa massa absurda de veículos. Os engarrafamentos de um trânsito “hobesbiano” são inacreditáveis mesmo para os mais acostumados sofredores cariocas ou paulistas. Uma via expressa absurda para o aeroporto  está sendo construída sobre pilotis no meio da baia do Panamá provocando assoreamento e recuo de centenas de metros no espelho d’água.  Havana,  no futuro,  correrá o risco extremo de um estupro automobilístico idêntico, se não se precaver. Amigos cubanos me explicaram que houve um momento de auge da bicicleta –eram chinesas,  importadas--   mais recentemente sepultado pelo boom automobilístico que apenas se inicia alimentado pelo petróleo venezuelano e pela liberalização na compra e venda de carros. A bicicleta –cujo uso é desconfortável por causa da má pavimentação--  passou a ser vista como out da mesma forma que ocorreu nas cidades chinesas onde, no entanto, seu uso ainda é muito significativo juntamente com as motos elétricas. 

 O desafio da  sustentabilidade social numa futura transição é ainda mais evidente: o inevitável “enxugamento” do setor público associado ao fim do peso não-conversível e da libreta contem elementos potencialmente explosivos conquanto sejam medidas econômicas absolutamente necessárias. A questão toda será a de que forma uma economia de mercado, com investimentos sobretudo em pequenos negócios, conseguirá compensar esse processo.  Embora o espírito empreendedor, o superavit de instrução, alguns nichos de alta tecnologia e a disponibilidade potencial de investimento  sejam elementos com os Cuba poderá eventualmente contar, é inevitável que o processo seja pontuado por dificuldades e tensões. E aí que a experiência dos “choques” russo e leste europeus indica que é preferível dispor de um poder de estado regulador forte e adotar um ritmo gradualista. Será possivelmente a forma de evitar o tal hiper Panamá:  um capitalismo agressivo, sem limites ou critérios, especulativo e predador.

 Qual o sistema político que poderá melhor gerir essa transição? Essa é a pergunta talvez mais difícil de responder. Aquelas ocorridas desde os anos 90 na Europa oriental, Ásia e mundo árabe, não mais nos autorizam ao simplismo de pretender que bastaria estabelecer uma democracia pluralista --que praticamente nunca existiu em Cuba--   autorizar partidos,  convocar eleições livres e convidar investidores. É claro que a situação atual de cerceamento das liberdades, monopólio sobre a  imprensa escrita e as  demais mídias, falta de acesso à internet e controle social truculento  via policia política e CDRs, é insustentável e, como já mencionei,  a opção chinesa de abrir no econômico  mantendo o político arrochado não parece ser factível a médio prazo, em Cuba.

 O cenário mais realista parece ainda ser o de uma transição gradual e progressiva, no político e no econômico com contrapesos e garantias das conquistas sociais e, muito particularmente,  do alto grau de segurança e  baixíssima criminalidade violenta que Cuba apresenta, contrastando com o massacre urbano que grassa em praticamente toda América Central e Caribe, com exceção da Costa Rica.    É o caso de se torcer por uma transição econômica social e ambientalmente sustentável que também termine promovendo uma abertura política segura até o estabelecimento de uma sociedade livre, plural e democrática a menos conflituosa e revanchista possível. Cenários, piores também pode ser imaginados envolvendo confrontos graves.  Esperemos que saibam evita-los. Muito vai depender das duas instituições hoje dominantes: o exército, cujo papel inclusive econômico é cada vez maior,  e o partido.

 Do outro lado, terá influência a postura política do segmento do exílio disposto a um diálogo e, naturalmente, do governo norte-americano com sua inegável capacidade de boicote ou, inversamente, de ajudar a potencializar uma abertura,  sempre que levante as sanções e desista de ditar a priori suas regras.   Daqui a dez anos Cuba provavelmente será bastante diferente do que é hoje, resta saber por quais  caminhos. Aplica-se a Cuba aquele ensinamento de Marx –não de Karl mas do Groucho--  segundo a qual “é muito difícil fazer previsões sobretudo quando se referem ao futuro”. A verdade é que vai mudar mas ninguém sabe direito como e quando. Mas quem viver, verá."

 
Cores

E agora: mais que trégua?



A embaixada norte-americana (oficina de interese) já existe há tempos. Faltava o embaixador.


Restauros no Malecón

Um de muitos que olha o mar

A transição nas cores...



Um comentário:

  1. Boa tarde, estive na COP20 em Lima e irei para a COP21 em Paris este ano.
    Acompanho suas postagens e como representei a juventude brasileira na COP20, necessito tirar algumas dúvidas!
    Teria algum e-mail para entrarmos em contato?

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