04/07/2020

Trecho do Descarbonário: A hora e a vez do Jair


Ao atiçar emocionalmente toda noite a revolta, inviabilizando o frágil governo de transição fruto do impeachment, a grande mídia vestiu a carapuça que a velha paranoia de esquerda lhe estendia e – penso que inadvertidamente – criou o caldo de cultura para uma revolta raivosa que encontrou seu mito no ex-capitão indisciplinado, sindicalista militar, que veio a tornar-se uma espécie de Lula pelo avesso.

Durante longos anos, a direita brasileira esteve bastante ausente, salvo no campo da economia, do debate de ideias. Uma voz de direita culta e ponderada foi perdida com a morte de José Guilherme Merquior, no início dos anos noventa. A direita política, com seus líderes tradicionais como Paulo Maluf, Antônio Carlos Magalhães e Jânio Quadros, não professava doutrinas ou discursos ideológicos; era pragmática ao extremo e soube se associar tanto ao PSDB quanto ao PT quando isso lhe interessou. 

Em sua passagem meteórica pelo poder e pela glória, Fernando Collor de Mello também não reivindicou, fora da economia, um sistema de pensamento conservador claro. Mais: promoveu uma forte aproximação com o ambientalismo, à sua maneira. Na Europa, a questão de mudanças climáticas permaneceu fora dessa dicotomia esquerda versus direita apesar, obviamente, da maior ligação da última com os grandes grupos econômicos. Preocupações com o clima penetraram, não sem contradições, na visão das multinacionais e em partes do sistema financeiro internacional.

A vitória da extrema-direita nas eleições de 2018 não me surpreendeu nem um pouco. Vi-a chegando claramente desde a desastrosa reeleição de Pirro de Dilma Rousseff, em 2014. Antes mesmo daquela eleição, eu já tinha a sensação de que o PT permanecera demasiado tempo no governo e não havia aproveitado os anos de vacas gordas para enfrentar problemas estruturais do país. Promovera, à guisa de maior justiça social, um aumento real do poder de compra de amplos segmentos pobres, incorporando-os ao mercado de consumo, aumentando o salário mínimo mas, sobretudo, com base no crédito. 

O problema é que  além de não ser propriamente desenvolvimento social, isso era reversível. Também criara uma forte animosidade na classe média tradicional, à qual infligira a percepção de perda de status e uma convicção de que os governos do PT serviam aos muito pobres e aos muito ricos ferrando quem estava no meio. 

Essa animosidade de fato  prejudicou o PT historicamente, pois anulou da memória das pessoas o muito que houve de positivo nos governos de Lula, sobretudo no primeiro. Negá-lo simplesmente não é realista. Lula deixou seu segundo governo com 86% de aprovação, elegeu seu “poste” e, com todo o enredamento na Lava Jato, liderava as pesquisas para as eleições de 2018 até sua prisão. É verdade que um imenso contingente da suposta nova classe média que ascendeu ao maior consumo nos seus governos passou a odiá-lo, mas isso apenas demostra como são volúveis os caminhos da vida e da política.

Porém, quem seria essa nova força que poderia, no jargão político, ocupar esse espaço? A figura óbvia teria sido Marina Silva. Só que ela – eu já sabia perfeitamente – não era talhada para isso. Eduardo Campos poderia ter sido, mas, tragicamente, o destino o levou. Por outro lado, era plausível supor, até pelo pêndulo natural da alternância, que a propensão maior é que viesse pela direita. A direta política no Brasil parecia ausente, encontrava-se em estado de catalepsia e em grande parte cooptada fisiologicamente pelo PT. 
A direita brasileira, pós-ditadura, nunca fora lá muito ideológica. Gostava também de mamar nas tetas do Estado e se acomodara às mil maravilhas aos dois governos do Lula, que sabia manejá-la bem com muita vaselina e jeito. Ver o Maluf e o Delfim Netto apoiando o governo do PT foi um espetáculo inenarrável. Mas, um dia, o brinquedo quebrou. A partir de 2013, passou a se oferecer um terreno fértil para o ressurgimento da direita. 

No caminho para o impeachment, o país reviveu o espírito das Marchas da Família com Deus pela Liberdade – com maior participação de uma classe média baixa e de pobres – que, desta feita, não resultaria em golpe militar, mas em uma robusta e inquestionável goleada eleitoral. O Ronaldo Caiado era quem mais se aproximava de uma direta assumida. Quando deputados, nos respeitávamos. Eu admirava seu talento e competência, ainda que discordássemos em quase tudo. Era o melhor  quadro da direita, mas não foi ele quem liderou sua volta  ao grande jogo.  Isso se deu pelas mãos do mais improvável dos personagens: o deputado Jair Bolsonaro.

Convivi com o Jair dois anos como vereador nos anos oitenta. Fomos ambos eleitos em novembro de 1988. Fui o mais votado, com 43 mil votos, e ele, tido como um “sindicalista” dos militares e envolvido em um rocambolesco episódio de bombas em quartéis – condenado em primeira instância, tinha sido absolvido pelo Superior Tribunal Militar por falta de provas –, teve, se bem me recordo, uns três mil, apenas. Vejam como sopram loucamente os ventos da política.

Tínhamos uma relação em geral tranquila e um cumprimento de praxe entre nós. Ele dizia: “E aí, verde?” E eu respondia: “E aí, verde-oliva?” No que pesem os respectivos históricos e seu discurso frequente em feroz defesa do regime militar, não havia entre nós o tipo de animosidade pessoal que ele entretinha com outros vereadores mais à esquerda, que guerreavam incessantemente com ele na tribuna por obrigação ideológica.

Ocasionalmente, polemizávamos, mas, de forma geral, mantendo certa amabilidade, apesar de eu ter sido guerrilheiro nos anos setenta e ele, mais tarde, um admirador dos que, à época, nos derrotaram recorrendo a torturas e execuções. Eu não entrava naquele jogo de hostilidade histérica, oportunista, mutuamente vantajosa para chamar atenção na mídia, que adora cobrir bate-bocas grosseiros entre políticos e agrada as respectivas bases de gregos e troianos que cobram “combatividade”. 

Jair, conquanto pouco eloquente, propenso a gafes homéricas e equívocos factuais abissais, conseguiu jogar esse jogo com maestria. Soube se dar bem em cima de seus habituais antagonistas. Por mais que perdesse sempre na argumentação de plenário e tribuna, sempre faturava alguma coisa naqueles arranca-rabos caça-mídia. Todos apareciam e ficavam felizes mas ele faturava muito mais sem que percebessem.

A mim, enchiam do mais profundo enfado polêmicas sobre os tempos da ditadura e da luta armada, razão pela qual, em geral, me recusava a dar palestras sobre o tema anos de chumbo quando era convidado por escolas e universidades. Leiam Os carbonários, aconselhava. Querem palestra? Posso falar de ecologia, mudanças climáticas, questões urbanas, gestão local, política internacional. Luta armada e 68 não são mais o meu assunto. Para mim, aquela guerra acabara com a anistia, de cuja revisão, como já expliquei aqui, discordava abertamente. 

Evitava ficar gastando saliva com aquilo, velho de meio século. O Jair estava mal informado, mesmo do ponto de vista de suas posições, sobre inúmeros episódios em relação aos quais ouvira o galo cantar sem saber aonde. Eu havia vivido aquilo. Ele, cinco anos mais jovem, conhecia de orelhada.

Logo depois daquela minha visita turística a Havana, no réveillon de 2014, alguns colegas da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional me sugeriram dar um informe da viagem, embora tivesse sido a passeio e, fique claro, com todas as despesas custeadas por mim. Contei o que vi e fiz algumas análises prospectivas. 

Defendi que o Brasil deveria, sim, manter laços econômicos e se preposicionar para ser um dos grandes players em uma futura Cuba com economia de mercado. Que, por essa razão, fazia sentido o empréstimo do BNDES para a construção do Porto de Mariel, tão criticado por setores da oposição junto com outros financiamentos, esses, de fato, temerários, senão criminosos, que os governos do PT andaram fazendo. Aquele fazia sentido estratégico e comercial. E Cuba, à diferença da Venezuela ou da Guiné Equatorial, vinha sendo adimplente.

Manifestei minha impressão de que dentro de mais ou menos uma década Cuba seria uma economia de mercado. Tinha uma mão de obra bem formada e barata, e um enorme potencial de investimento por parte da segunda geração de cubanos-americanos.  Iríamos disputar negócios ali com europeus, asiáticos e norte-americanos. À medida que prosperassem a economia  e a população melhorasse seu padrão de vida, haveria maior chance de uma democratização.

O Jair, naquela manhã, chegou à sala da Comissão bem no final da minha exposição e sentou-se  na minha frente. Ouviu apenas o finalzinho. Pediu a palavra e logo irrompeu em uma diatribe furiosa:
– O deputado Sirkis, que andou envolvido no regime militar, agora quer que os cubanos esperem mais dez anos para serem livres!
– Peraí, deputado. Me envolvi foi contra o regime militar, não é?
– Isso mesmo. Vossa Excelência sequestrou o embaixador americano e o manteve por 41 dias em cárcere privado – atacou, tomado por uma fúria súbita que, na hora, continuei sem entender.
– Não foi o americano. Esse foi o Gabeira. Foi o suíço – retruquei, rindo e provocando risadas também na sala.
– Ele confessou! Ele confessou! – berrava o Jair.

Continuei sem entender. Não havia ali, de fato, discussão sobre Cuba. Eu torcia para que o país virasse uma economia de mercado e uma democracia. Já a minha participação em 1970 no sequestro do embaixador Giovanni Enrico Bucher e sua troca por 70 presos políticos era um episódio amplamente conhecido da história do Brasil e objeto de um longo capítulo do meu livro Os carbonários. Aquela discussão em 2014, quarenta e quatro anos mais tarde, soava francamente surrealista.

Só alguns dias depois entendi o porquê de toda aquela esquisitice. A assessoria do Jair divulgou no YouTube: “Bolsonaro desmascara Sirkis”, editando as imagens da TV Câmara de maneira a formar uma historinha em que ele parecia conduzir um interrogatório, me levando a “confessar” um “crime do passado” em primeira mão. O filmete teve umas três mil visitas. Depois, percebi que ele dedicava boa parte do seu tempo a criar incidentes desse tipo para montar esquetes editados e divulgá-los na internet. Naquele dia, por acaso, sobrou para mim. Fui o seu sparring involuntário.

 Embora o Jair fizesse frequentes alusões aos anos de chumbo para defender o aparato de repressão, as torturas e seu ídolo, o falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI de São Paulo, parecia ter escasso conhecimento factual dos episódios daquela época. Também não sabia defender o regime militar com dados ou argumentos consistentes, como vários outros políticos de direita que encontrei.

Na época, achei aquilo tudo um grande nonsensee me diverti assistindo ao vídeo que ele tinha armado para cima de mim. Optei por não denunciá-lo ao YouTube. Preferi deixá-lo ali, como uma didática do fake. Na vida real – se é que se pode chamá-la assim atualmente – minha relação com o Jair continuou razoavelmente cordata. Via seus arroubos na Comissão e, algumas vezes, no plenário como maneiras de chamar a atenção, fixar sua grife, sua imagem de marca.

Havia um punhado de outros deputados, em geral defensores de grileiros e desmatadores, da bancada ruralista, com os quais eu tinha, de fato, uma relação pessoal hostil. O Jair não fazia parte desse rol. Eu o observava, em modo quase jornalístico, quando disparava aquelas suas diatribes direitonas. Soltava aquilo e depois ficava olhando, travesso, para ver o efeito da sua provocação nos colegas da esquerda combativa. Aquilo tinha um quê de provocação, de pirraça, depois virava meme no meio digital. Eu não percebia que assistia ali aos primórdios de uma futura vitória acachapante do virtual sobre quaisquer vestígios do real.

Ocasionalmente, eu discutia suas fobias comportamentais, tentando puxar para o factual, sem aquele furor dos colegas de esquerda e extrema-esquerda com os quais ele ardilosamente contracenava. 

Eu preferia o humor, como em outra ocasião, na Comissão, em que ele criticou:
– O Sirkis se diz ecologista, mas ignora o maior problema ecológico da humanidade.
– Jair, qual é, então, o maior problema ecológico da humanidade? – perguntei.
Ele sentenciou:
– A superpopulação.
– Mas, Jair, você acaba de me dar um grande argumento em prol do casamento gay!

Gargalhada geral na Comissão. Ele também riu.


PS:  Depois da pandemia do COVID 19, do "e daí?", da ameaça de "armar o povo" para resistir as medidas de isolamento social dos governadores e prefeitos e do veto ao uso obrigatório de máscara, para mim deixou de ser piada. De fato ele encontrou uma forma de combater a superpopulação...




14/06/2020

Descarbonário, o prefácio

Meu novo livro Descarbonário está no prelo e vai ser lançado a partir final do mês, virtualmente, em diversas cidades, uma a uma. Teremos lançamentos no Rio de Janeiro, em São Paulo, Brasília, Recife e por aí vai, combinando uma audiência interativa por zoom com audiências maiores por Youtube e Face Book.

É um desafio novo lançar um livro em plena pandemia, com as livrarias todas fechadas e o próprio ofício de escritor pretensamente em extinção... 

Sairá pela Ubook inicialmente e de forma simultânea como e-book e livro de papel sob encomenda entregue à domicílio. 


Vou aproveitar para relançar uma edição de 40 anos de Os Carbonários. Em breve ambos estarão também disponíveis em áudio book. Quando as livrarias reabrirem sairá pela editora TIX uma edição para elas (as que pagam). 


Enquanto aguardamos eis o prefácio de Descarbonario:



Prefácio

O título deste livro é um trocadilho infame.

Em 1979, no último ano de exílio em Portugal, às vésperas da anistia, terminei de escrever Os carbonários, meu livro de memórias da época do movimento estudantil de 1968 e dos posteriores anos de chumbo. Ele foi publicado em 1980, depois de meu regresso ao Brasil. Virou best-seller e ganhou o Prêmio Jabuti no ano seguinte.

Quatro longas décadas depois, de maneira alguma pretendo voltar aos temas daqueles anos, uma longínqua experiência de vida da qual, conforme defini no prefácio da 14aedição, em 1998, “não me orgulho nem me envergonho”. Aconteceu, pronto. Desde então me tornei ainda mais crítico de qualquer forma de violência política, mas isso não vem ao caso aqui, até porque não há, para além do jogo de palavras, relação entre este livro novo e aquela obra, de lá se vão quarenta anos, cujo título metafórico comparava nós, protagonistas dos anos de chumbo, aos não menos patéticos jovens carbonari,do século XIX, revolucionários derrotados da futura Itália inspirados pela Revolução Francesa.

Aqui a metáfora é outra. Digo que sou um descarbonárioporque me dedico, hoje, a um tipo de ação política destinada a reduzir a emissão de dióxido de carbono (CO2) e outros gases causadores do efeito estufa na atmosfera terrestre – ou seja, descarbonizá-la para tentar conter a progressão das mudanças climáticas aquém de patamares apocalípticos. No final da década de 1970, tal propósito como ideal de militância política seria certamente considerado algo digno do manicômio, a ser interpelado com a famosa pergunta-título do contemporâneo livro do meu amigo Fernando Gabeira: O que é isso, companheiro?Ele “pirou”, comentar-se-ia nos tempos de então. Serdescarbonárionão é, portanto, o oposto de ter sido carbonáriohá cinquenta anos. Simplesmente pertence a uma outra galáxia, outro universo, não sei muito bem se paralelo ou perpendicular. Trata-se de outro animal.

O dióxido de carbono (CO2) é o principal gás de efeito estufa. Os demais, para efeito de cálculo, podem ser convertidos em CO2-equivalente. Descarbonizara economia do planeta é o nome do jogo planetário praticado pelos que se empenham em não perder completamente essa batalha, já muito malparada, e também implica se adaptar às consequências inevitáveis da mudança climática. Mais da metade do carbono lançado na atmosfera pela queima de combustíveis fósseis ocorreu nos últimos trinta anos, quando já havia bastante informação sobre seus efeitos. Nesse aspecto, as más línguas sussurrariam que, afinal, existe, sim, certa semelhança entre ter sido carbonário, nos anos setenta do século passado, e ter me tornado descarbonário: um certo viés quixotesco.

Confesso que aprecio o personagem docaballero de la triste figurade Miguel de Cervantes. Ganhei, há uns anos, uma estatueta do Dom Quixote, que conservo carinhosamente no meu escritório. Houve uma época até em que me acompanhava um Sancho Panza, o Saulo, meu motorista da Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura do Rio. Eu, alto e magro; ele, baixo e barrigudo. Parecíamos aquela dupla.

Mas, ao contrário do distinto fidalgo de Cervantes, não faço guerra aos moinhos de vento. Na verdade, luto com afinco a favor deles na sua versão moderna, eólica, que integram o esforço descarbonizador e substituem com sucesso as usinas a carvão na China e em outros países.

Quando comecei a escrever este livro, chegava ao fim o ano mais quente da história, 2016, suplantando, assim, os outros dois mais, anteriores, 2015 e 2014. Terminei-o no segundo ano mais quente, 2019. Sete dos dez mais cálidos ocorreram na recém finda década de 2010. O que está acontecendo com o planeta não escaparia nem a Rocinante, a não muito sagaz montaria delcabalero. Talvez ainda eluda o Pato Donald…

Eu havia começado a escrever este livro como uma espécie de “tudo que você precisa saber sobre mudanças climáticas”. Seu título provisório era “O clima que rola”, outro trocadilho infame, este pavoroso. Não é nada fácil escrever sobre esse assunto. Desisti do simples ensaio porque os textos – os meus, inclusive – perigam ser herméticos, até chatos, a não ser para um grupo reduzido de leitores muito interessados. Tenhocentenas artigos sobre o tema publicados em jornais, revistas, sites e blogs, e seu universo de leitores ainda é restrito.

Minha história pessoal, minhas memórias dos anos oitenta para cá, os episódios que vivi na política, minhas opiniões sobre variados campos da atualidade, brasileira e mundial, umas tantas histórias, algumas divertidas, começaram a atazanar minha prosa climática. Percebi que o Descarbonário, afinal, tinha que ter também esse lado de narrativa de causos e de avaliação crítica, passada e prospectiva. Que eu trazia um folclore político a ser relatado. No início de 2017, quando muita coisa ainda era incerta, senti aquela vontade irresistível de voltar a ser um contador de histórias. Foi só começar que elas vieram.

Decidi me afastar da política eleitoral partidária, em 2014 e não quis mais me recandidatar a deputado federal. Passei a acreditar que minha melhor contribuição poderia ser na formação de jovens líderes. Nas minhas palestras para esses “multiplicadores” sobre temas como clima, ecologia urbana, gestão ambiental e urbanística local, costumo sugerir: “Ao expor suas ideias, procure sempre o caminho da narrativa, de uma pequena historinha que ilustre e exemplifique o que você quer transmitir. Apenas o conceito, por mais animadamente explicado que esteja, não consegue chegar afiado nas pessoas nesses tempos tão dispersivos em que o leque de atenção, balizado pelo WhatsApp ou pelo Instagram, é cada dia mais curto.”

Decidi contar histórias entremeadas de análises e adotar um estilo de narrativa descontínuo, mais parecido com o de dois outros livros meus, Roleta chilenaCorredor polonês, o que é sempre um desafio e um considerável risco literário. Muita coisa havia acontecido e estava acontecendo no Brasil e no mundo que merecia ser analisada sob um olhar independente de ideologias que acredito hoje ser o meu. É um olhar de escritor, não de político. É mais livre. Não me sinto aprisionado por conveniências, obrigado a recorrer àqueles simplismos. Em política não há muita margem para a sinceridade, a sutileza, as matizes. Tudo tem que ser preto no branco, maniqueísta, nós versus eles. Só que a vida e a própria política, vistas fora de uma perspectiva instrumental, não são bem assim. O fio da meada aqui será a experiência de vida, não a ideologia.

São muitos causos, alguns cômicos. Reconheci que nunca mais teria histórias com tanto suspense, tão trágicas e divertidas quanto em Os carbonários, mas ainda restam umas tantas a compartilhar. O texto climático, conceitual, didático, do “tudo o que você precisa saber” sobre o clima, é entrelaçado com vivências do meu próprio aprendizado descarbonário e uma análise dos descaminhos da política internacional e da brasileira, que agora parecem um avião em espiral descendente.

A narrativa se encerra na última semana de 2018, quando deixei nas mãos do então presidente Temer, em fim de mandato, o documento “Mudanças climáticas: riscos e oportunidades para o Brasil”. Eu o fiz na posição (não remunerada) de secretário executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima. Destinava-se ao seu sucessor, Jair Bolsonaro, meu ex-colega da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro e, depois, da Câmara dos Deputados.

Narro alguns episódios de nossa relação, pessoalmente meio bizarra comchoques que eu mantinha no terreno político, sem histerias. Apesar de minha crítica contundente e profunda ao Partido dos Trabalhadores, acabei, depois de considerar fortemente o voto nulo, votando em Fernando Haddad no segundo turno, depois de outro voto “útil”, a contragosto, em Ciro Gomes no primeiro. Bolsonaro, cuja vitória eu antevia há mais de ano, representava para mim a expressão brasileira de um fenômeno mundial de direita populista que evoca – não sei ainda se como nova tragédia ou farsa – os anos trinta do século passado. Consumada a eleição, considerei que, democraticamente, deveríamos todos aceitar o resultado das urnas, que fora inequívoco. Cheguei a acreditar que, uma vez sentado na cadeira presidencial, baixariam sobre Jair os eflúvios da responsabilidade e que, não obstante sua visão fascistaeparanoide e dassuas idiossincrasias, ele deveria se comportar como presidente de todos os brasileiros.

Isso certamente não aconteceu. Passado um ano, sabemos que não acontecerá. O poder nitidamente piorou a pessoa. Temos um governante intolerante, desumano, desprovido de decoro, profundamente desinformado que toma conhecimento das questões “de orelhada”, cercado de gente que, como ele, acalenta sonhos golpistas para os quais não dispõe, por enquanto, de massa crítica e tem como grandes obstáculos o Congresso (com todos os seus enormes defeitos) e o Supremo Tribunal Federal. Também não é mais capaz de mobilizar multidões e aqueles que as têm – os chefes pentecostais – a princípio, não se interessariam em vê-lo com todo-poderoso. Sabem que, numa ditadura, mais cedo ou mais tarde, sobraria para eles também.

Não obstante, são preocupantes as frequentes alusões do núcleo do poder familiar a eventuais rupturas do regime democrático; as agressões que, no início, sofreram expoentes da alta hierarquia militar – aparente loucura, mas com método; seu esforço em estabelecer vínculos diretos com a oficialidade média e as polícias militares; uma relação no mínimo preocupante com o mundo das chamadas milícias; e seu afã de armar certos segmentos da população.Seu pior desvario se relaciona à pandemia da COVID 19, a atitude negacionista, a reação à previsão de dezenas de milhares ou mais de vítimas com um cínico “e daí?”. A demissão por pura ciumeira de um ministro da saúde que tentava fazer seu trabalho.

Quando escrevo este prefácio ele ainda ostenta o apoio de 30% população, mas perde.Outro tanto se identifica mais ou menos com a esquerda  hegemonizada pelo PT lulista, incapaz de fazer a menor autocrítica dos imensos erros que cometeu e aferrada a uma posição que considero particularmente repugnante: o apoio à ditadura de Nicolás Maduro, na Venezuela. Aliás, a quem Bolsonaro mais se parece, cores a parte. Uma maioria relativa, uns 40%, não quer, de jeito algum, nenhum desses dois polos. Mas a oferta política de momento não destilou uma alternativa de centro. Poderá surgir?

Há um recuo da democracia no mundo. É algo inequívoco; não sabemos se reversível. “Democraduras” e ditaduras vêm se espalhando e demonstrando que o capitalismo não precisa, necessariamente, da chamada democracia liberal. No Brasil, Bolsonaro, a princípio, enfrenta maiores dificuldades que Duterte, Orbán, Kaczynski, Putinou Erdogan para se impor como chefe autoritário. Esses, excetuado o primeiro, levaram tempo para se consolidar enquanto governantes despóticos.

“Afinal, Sirkis, nessa altura do campeonato, onde você se situa ideologicamente?”, é uma pergunta que me fazem. Tenho realmente dificuldade em me autorrotular. No que pesem minhas agruras com o PV– que, aliás, fundei– sou um verde,[1]e me satisfaz o conceito de “nem à esquerda, nem à direita, mas a frente”.

Para os que considerarem isso mera frase de efeito, vou diferenciar por esferas. Vamos lá: socialmente me considero de esquerda; acredito que a pobreza e a concentração de renda são os problemas maiores. Economicamente, não considero nem a economia clássica nem o neokeynesianismo puros como a “escola correta”. Penso que tudo depende de situações, que variam e demandam instrumentos de ambas, por vezes até simultaneamente, como mostra hoje a experiência de Portugal. Rejeito, sim, o neoliberalismo plutocrático e o estatismo, com gastança descontrolada e corrupção generalizada. Acredito que a humanidade tem contas a ajustar com a financeirização da economia global, mas que isso terá que ser tratado numa luta supranacional. Nenhum governo é capaz de bancar essa parada sozinho.

A nova grande depressão, ainda em seus estágios preliminares, assinala o fim do atual paradigma neoliberal, de controle obsessivo do déficit e da financeirização globalizada. Há uma nova economia de guerra surgindo com um papel renovado para o Estado e a caixa de ferramentas de Lord John Maynard Keynes na busca de réplicas contemporâneas do New Deal e do Plano Marshall. São impressões ainda preliminares.

Politicamente, acredito que a democracia precisa tanto de uma esquerda democrática quanto de uma direita civilizada, e que a alternância entre ambas é necessária, pois as duas servem a circunstâncias históricas dadas. O centro pode se articular com uma ou outra dependendo da situação concreta. Os verdes alemães, por exemplo, tinham a tradição de se aliarem à socialdemocracia. No futuro, tudo indica que formarão um governo com a União Democrata-Cristã, de Angela Merkel.

Rejeito cabalmente a esquerda autoritária, leninista ou populista, e a direita reacionária ou fascistoide. Sou crítico das políticas identitárias em sua atual deriva, tanto à esquerda quanto à direita. Sou adepto da geleia geral. Isso talvez faça de mim um personagem do “centro radical”. Não digo isso para parecer sofisticado, mas porque essa minha “moderação” comporta também propostas drásticas, minoritárias e altamente polêmicas, como a legalização das drogas, que discutirei mais para o final do livro.

Em matéria de segurança, sou, vejam só, mais à direita. Não tolero “dar mole” para bandido – seja o traficante ou a política de “arreglo”, sejam os milicianos – e critico a leniência do nosso sistema penal com relação ao crime violento. Não acredito no mito do bandido-vítima-da-sociedade. Considero um insulto aos pobres. Esquerdistas já me acusaram de ser de direita por causa disso. Tenho horror à desordem urbana. Se ser linha-dura em relação aos criminosos que atormentam nosso cotidiano e ameaçam nossas famílias significa ser de direita, que assim seja, pelo menos nesse departamento.

Enfim: ideologia, não preciso de uma para viver – parafraseando (e contrariando) o verso  do meu saudoso amigo, Cazuza. Quanto a religião, não sigo nenhuma em particular. Genética e culturalmente, sou, obviamente, judeuashkenazi. Intelectualmente, me assola um certo agnosticismo. Mas tenho Deus no coração. Já rezei em sinagoga, igreja, templo, terreiro e mesquita. Diversos caminhos levam a Ele pelo conduto do amor. Cuidar da natureza e do clima é defender sua Criação, que se deu – percebam, ó criacionistas – na forma da evolução natural explicada pela ciência, que, no entanto, não traz respostas a todos mistérios.

Estive recentemente no Vaticano com um grupo de governadores da Amazônia: brasileiros, peruanos e ambientalistas a convite de monsenhor Marcelo Sorondo, um argentino, figuraça,  que preside a Academia Pontifícia das Ciências. Os governadores levantaram a bandeira do movimento subnacional que estamos criando, os “Governadores pelo Clima”. A encíclica Laudato si’, do papa Francisco, é um dos mais poderosos documentos em defesa da natureza e do clima. Não existe, verdadeiramente, contradição insolúvel entre ciência e fé, desde que haja uma leitura metafórica de todas as Santas Escrituras e entendamos que nós, humanos, carecemos de entendimento do que está acima de nós. Buscamos caminhos. Temos a capacidade de amar.

Penso, de fato, que a mudança climática é o principal problema da humanidade; sairá de controle rumo a níveis apocalípticos se fracassarmos na estreita janela de oportunidade que nos resta. A situação internacional é, hoje, pior do que em 2015, quando foi assinado o altamente insuficiente Acordo de Paris. Trump e Bolsonaro tornaram-se grandes obstáculos a um avanço urgente, emergencial. São expoentes tristes da indiferença e do retrocesso.

Uma das piores performances do atual presidente é sua postura em relação ao meio ambiente e à questão climática. Tivemos com todos os governos anteriores embates ambientais em que éramos confrontados com interesses econômicos ou estratégicos variados e poderosos que se impunham politicamente. Isso ocorreu com Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer. Todos tiveram falhas, mas também alguns acertos, em maior ou menor quantidade, ao sabor de correlações de força em situações variadas. Desde o final do governo Fernando Henrique, o Ministério do Meio Ambiente mantivera sua integridade, com derrotas e avanços.

No caso de Bolsonaro, o componente dos interesses econômicos em jogo é praticamente secundário em relação a outro fator: da sanha idiossincrática. Em algum momento, por perceber que uma parte dos ambientalistas era de esquerda, em sua sesquipedal desinformação, passou a catalogar a questão ambiental e climática na “caixinha” do comunismo e a se identificar com todo tipo de atividade devastadora que identifica como progresso: grilagem, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, poluição. Desenvolveu uma antipatia visceral por uma causa cujos pioneiros, ironicamente, foram ilustres militares, como o marechal Cândido Rondon, o major Francisco Archer ou o almirante Ibsen de Gusmão. Preferiua inspiração de Pato Donald.

Em palavras – as quais, naboca de um presidente da República, contam muito – e em ações, não só desmantelou trinta anos de construção ambiental da democracia brasileira, como chega a colocar em questão, através de um projeto de lei de seu filho senador, disposições do próprio Código Florestal original de 1965, da época do regime militar, como a Reserva Legal. O Brasil não só ficou extremamente “mal na fita” internacional (situação agravada por seus bate-bocas infantis), como foi (e será) afetado na área econômica em geral e no sacrossanto agronegócio exportador, em particular.

O Brasil desempenhava um papel muito importante nas negociações climáticas internacionais, pois era o país que fazia a ponte entre o G77 + China, a União Europeia e os Estados Unidos. Neste livro, critico a postura do Itamaraty, que tendia a tratar a questão climática através das lentes da geopolítica. Não obstante, o papel da nossa diplomacia na Rio-92, passando por Quioto, Copenhagen e Paris, foi sempre muito relevante na articulação e no reforço da ambição em momentos decisivos. Na Conferência do Clima mais recente, a COP 25, em Madri, nos alinhamos aos recalcitrantes climáticos: Donald Trump, que prevê a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, e a Austrália, de Scott Morris, um país em chamas cujo governo insiste no negacionismo climático.

 Ambos agora se juntaram aos empata-fodas mais antigosdo grupo chamado like minded(os que pensam parecido): a Arábia Saudita e a Venezuela, além de outros bolivarianos. Sem esquecer o Japão e a Índia, ali atrás do biombo. Por conta de um chanceler, o pré-iluminista, Ernesto Araújo, que renega a mudança climática como uma “conspiração marxista” (?) e apresenta como prova insofismável o fato de fazer frio em Roma, quando de uma visita sua, viramos alvo da chacota internacional.

É onde estamos ao terminar este prefácio,que é sempre –graças a Deus- a parte mais perecível de um livro. Oscarbonáriosteve dois; o segundo, sujeito a várias revisões. Peço a Deus que sua vida útil seja a mais breve possível e que ele tenha que ser reescrito para introduzir Descarbonário em conjuntura mais feliz. Não sabemos, no entanto, se o ciclo reacionário que o mundo e o Brasil atravessamé curto ou longo. Um soluço da história ou o novo normal? De qualquer forma, haverá sempre argumentos para brandire causos para contar. Insisto em ser, primordialmente, um contador de histórias.




[1]Os verdes no Brasil estão dispersos. O partido que fundei transformou-se em algo irreconhecível e constrangedor. Renascerá, um dia, tal qual uma fênix? 

12/06/2020

Falta um Bretton Woods da descarbonização

O menos-carbono convertido em criptomoeda do clima. Um vírus do bem que precisar ser injetado nas veias da economia global


 Ainda que de uma forma perversa a recessão da pandemia reduzirá as emissões de gases-estufa no planeta entre 6% e 7%, embora as emissões do Brasil periguem aumentar em função do desmatamento crescente. 

A recessão é um caminho ruim de reduzir emissões, A não ser que haja uma mudança de tecnologias e padrões ela voltarão a subir em flecha uma vez o crescimento retomado. O Green New Deal discutido na Europa é justamente a ideia de uma futura retomada em padrões mais limpos. 

A “solução” não virá do sistema ONU nem do voluntarismo de governos por mais que seja desejável. Vou mais longe: não viria ainda que tivessem uma vontade política que não têm.  

 Vejam: a tecnologia para um mundo carbono neutro já existe! Em meados dos século,  o transporte a combustível fóssil será coisa do passado. O maravilhoso petróleo do Pré Sal, daqui a menos de 20 anos,  vai ter que competir  desesperadamente por um mercado minguante com poços de  países com custos menores de extração onde o petróleo praticamente aflora no deserto. Mais de 60% do petróleo atualmente  em condições de ser explorado vai virar stranded assets (recursos "extraviados" ou interditos

 A indústria já sabe disso mas o poder do engano e do autoengano é imenso. E a industria automotriz pensa manter mercados fósseis residuais. O Brasil parece ser um deles, pelo menos nos planos da Anfavea... Esse é um problema econômico e social futuro muito sério e terá que haver uma definição sobre um valor econômico a ser atribuído aos stranded assets,  o petróleo não extraído para evitar emissões. Um problema de precificacão positiva.

 Para absorver carbono numa escala compatível com 1.5 grau a humanidade também terá  de  reflorestar uma superfície do tamanho do território dos EUA. O Brasil, com pelo menos  60 milhões de km2 de pasto degradado,  tem algo a dizer a respeito. 

De onde virão dos três a cinco trilhões de dólares, por ano,  para financiar a descarbonização, inclusive para compensar os “perdedores” vinculados à economia fóssil, cujo poder, como vimos na França, em 2018, com   os “coletes amarelos”, ou, mais recentemente, no Equador e no Irã, há que ser levado em consideração. Além de financiar a transição propriamente dita –solar, eólica, veículos elétricos, mega reflorestamentos, novas tecnologias industriais e de construção--  será preciso compensar a legião de perdedores. 

E temos ainda a conta da adaptação. O número que tenho ouvido são seis tri por ano...

  Porque esses três a cinco trilhões --cem bilhões além do mais é ridículo! É peanuts--   podem ser encontrados num sistema financeiro privado global que movimento uns 220 tri que não convergem para a economia produtiva "real". Há muitos trilhões de fundos de pensões, fundos soberanos e bancos de investimento que poderiam convergir para financiar a descarbonização com garantias oferecidas por um grupo de governos e bancos centrais confiáveis. Mas isso é uma pequena parte apenas. O essencial está na revolução do próprio sistema de valores da economia, ou seja no reconhecimento de um novo valor, um novo padrão: o do menos-carbono. 

 Para fazer frente à catástrofe climática anunciada é necessária uma revolução. Isso mesmo, uma re-vo-lu-ção. Não dessas de fuzilar gente, de heróis, de mártires e de ditadores mas uma revolução cultural-financeira, central,  no  critério de valor econômico. A emergência de um novo valor, conversível,  em bens, serviços e tecnologia descarbonizaste.

 Se quiserem, pode ser uma nova moeda,  o menos-carbono. O novo ouro!

O novo ouro?

 Em 2015, o Brasil conseguiu introduzir no preâmbulo do Acordo de Paris o Parágrafo 108, por força de barrocas articulações de quem lhes escreve e do diplomata Everton Lucero. É formulado num barroco  jargão diplomático que diz: "Reconhece o valor social, econômico e ambiental das ações de mitigação voluntárias e seus cobenefícios para a adaptação, a saúde e o desenvolvimento sustentável;"
  
  O "x" da questão está no reconhecimento do valor  (...)econômico(...) das ações de mitigação voluntárias, quer dizer do menos-carbono. A expressão "voluntárias" ficou propositadamente ambígua, podem ser ações para além da NDC. Mas as NDC são elas próprias compromisso voluntário.  Pessoalmente penso que seria mais apropriado e compatível com a coexistência de um mercado de carbono elas serem "over the cap", acima das NDC na direção na neutralidade de carbono.   De qualquer forma ficou estabelecido que  reduzir emissões ou retirar carbono da atmosfera passava a ter, desde Paris,  valor econômico, intrínseco. 

 É um tipo de valor diferente  do proveniente  dos “créditos de carbono” nos quais de  compra uma redução de emissões de outrem para atender à meta, que não se logrou. Isso é algo que, novamente,   não foi regulamentado, em Madrid,  dado o impasse nas negociações do Artigo 6º. 

 Pessoalmente, não acredito que o MDS, sucedâneo do MDL, num tempo em que todos os países têm suas NDCs, possa mobilizar recursos muito significativos. Embora possa ser útil under the cap.  

 A revolução, porém, é  a precificação positiva do carbono. Uma revolução na economia econômica mundial, uma Bretton Woods do clima  que literalmente fará do menos-carbono o novo ouro. 

 Não uso uma metáfora descabida, nem delirante,  pois se trata, para a humanidade, de um momento análogo ao que ocorreu há milênios quando da “invenção” do ouro como um valor  quando de sua introdução com uma abstração  de troca, baseada na confiança,  e aplicada a qualquer bem transformado em mercadoria, numa economia até então dominada pelo escambo. 


  Já discutimos diversas maneiras de potencializar essa “precificação positiva” do menos-carbono. É o oposto simétrico daquela precificação de carbono  da qual se fala, discute, estuda e, eventualmente,  tenta aplicar,  corriqueiramente. Essa é a precificação   real, ou “negativa” do carbono que vem obtendo um sucesso ate agora  limitado. 

Serve para taxar o carbono, servir de referencia para seus mercados e de "shadow price" (um preço "sombra", simulado)  para as empresas se prepararem para essa  quando essa precificação "negativa" venha a ter força de Lei, taxado as óbvias externalidades negativas as emissões e suas consequências deletérias de efeito local.  

 Ambas formas de precificação do carbono valem.   Não são contraditórias,  partem da mesma consideração: apenas uma é o "porrete" e a outra a "cenoura". São ambas necessárias mas os luminares do pensamento econômico climático preferem ignorar a "cenoura" por conta e risco dos governantes e dirigentes  aos suas assessoram e cujas agruras depois assistem nas ruas. 


A Iniciativa 108


 A precificação positiva, como vimos,  foi instaurada no Parágrafo 108 da Devisão de Paris (o preâmbulo do Acordo) por proposta do Brasil numa articulação feita por mim e pelo Everton Lucero. O princípio está lá: o reconhecimento por 196 governos do valor social, econômico e ambiental das ações de mitigação. Mas sua instrumentalização não avançou. 

 Não conseguimos --ainda espero--   sensibilizar governos, bancos centrais, bancos de desenvolvimento. O Banco Central Europeu, na sua fase de quatitative easing imprimiu liquidês a rodo para comprar todo tipo de papeis mandrakes mas, obtusamente,  não pensou em lastrear certificados de redução/sequestro de emissões, em instituir uma moeda do clima para ações de descarbonização. Ignorou as chances de precificacão positiva do carbono que poderiam ter dinamizado mais a economia e gerado muito mais empregos. 

 Os grão-economistas climáticos acharam a ideia “interessante” mas como não foram contratados para desenvolve-la preferem ficar brincando com a ilusão do Banco Mundial de que a precificação real do carbono para efeito de taxação, mercado ou shadow pricing avança avassaladoramente  no planeta, nos seus power points,  a passadas largas.  Isso simplesmente não está acontecendo no mundo real, pelo menos num ritmo capaz de fazer frente a crise climática e prevenir a catástrofe. 

  Poucos no establishment parecem perceber o potencial revolucionário disso e aqueles que percebem, por diversas razões,  temem botar a cara a tapa, Nossa Iniciativa 108,  com pensadores como os professores Jean Charles Hourcade, Micheal Aglietta, Dipak Dasgupta, Seyni Nafo e outros decidiu, pelo momento, se fixar num mecanismos de precificação positiva, mais imediato e menos ousado que é um Fundo Garantidor para projetos descarbonizantes. O establishment vem reagindo melhor a isso que denomina de blended finance.

  Em 2020 dá vontade  de chutar o pau da barraca.  De começar a imaginar que a precificação positiva  poderá  se desencadear  totalmente fora das esferas oficiais e que a  descarbonização será alavancada por uma moeda lastreada no menos-carbono. Nesse caso dependerá mais de Greta, Madonas, especialista em block chain, hackers e de um gigantesco movimento de revolução cultural nas ruas e na internet.  

Já existe um montão de criptomoetas. A mais famosa, totalmente artificial –e daninha ambientalmente--  o Bitcom,  continua  apesar de Bancos Centrais terem prognosticado sua morte tantas vezes. Depende de uma “mineração” informática de block chain, complicadíssima e que acarreta  imenso  gasto de energia, sobre tudo na China onde ela vem principalmente do carvão.  

A moeda do clima seria bem mais fácil. 

 Uma criptomoeda (com vocação de moeda) lastreada simplesmente no menos-cabono para o qual já abundam mecanismos técnicos de certificação, no próprio sistema da ONU, herddos do MDL(CDM em inglêso antigo mecanismo de desenvolvimento limpo,   é uma arma cujo potencial não pode mais ser desprezado. 

 Futuramente, poderá inclusive, servir para rever o papel geopolítico desproporcional,  absurdo  do dólar.  Lord Keynes tentara evita-lo, inutilmente, em Bretton Woods, em 1944,   ao propor o Bancor, uma moeda internacional  lastreado pelo ouro. A ideia foi fulminada pelos americanos. Um moeda internacional lastrada no menos carbono poderia talvez realizar seu sonho. 

  O mundo só tem a perder sua impotência diante da mudança climática. Hackers, pop-stars e formadores de opinião de todo o mundo uni-vos: viva a criptomoeda do menos-carbono!