O “gancho”, como diríamos em jargão jornalístico, foi o grave acidente de derramamento de petróleo na baía da Guanabara perto da refinaria Duque de Caxias, em janeiro de 2000. Uma parte considerável dos fundos da baía foi coberta por uma enorme mancha de óleo. As praias da região, já bastante poluídas, ficaram cheiras manchas do que parecia um piche negro e pastoso. A ilha de Paquetá foi duramente atingida. Os peixes começaram a morrer em massa e as fotos dos biguás, agonizantes, asas cobertos de óleo, correram o mundo. Não chegou a ocorrer o que antecipou o jornal francês Le Monde, numa monumental e alarmista “barriga”: La maré noire de la baie de Rio menace Copacabana (A maré negra da baía do Rio ameaça Copacabana). A mancha, contida mais aos fundos da baía por barreiras flutuantes, nunca chegou de fato a ameaçar as praias oceânicas do Rio ou de Niterói mas o acidente foi certamente o mais grave da sofrida história da baía e um dos piores do país em todos os tempos.
Foi também um momento
de mobilização da sociedade civil e da imprensa e resultou num raro surto de
voluntariado: milhares de pessoas se ofereceram para trabalhar na limpeza das
praias e, particularmente, na tentativa de salvar a fauna empesteada de óleo.
Jovens de máscara, luvas, balde e escovão, tentavam limpar o petróleo das asas
dos biguás e outras aves que saltitavam em agonia na areia sem conseguir mais
voar.
O movimento
ambientalista se mobilizou em protestos cujo alvo era logicamente a empresa
estatal acusada de falta de cuidados e de planejamento. Aqui no Rio de Janeiro
fizemos diversas. A Petrobras, na época
presidida por Phillipe Reichstul, de
forma inédita, abriu-se para um diálogo com os ambientalistas. Na condição de
vice-presidente executivo da Ondazul --o presidente, na época, era o Gilberto Gil-- participei de várias dessas reuniões. Do lado da empresa me recordo dos dois
principais interlocutores: Rodolfo
Landim, que depois fez carreira na iniciativa privada, e Lia Blower.
Uma parte dos
ambientalistas queria apenas marcar posição e brigar. Outros, nos quais me incluí, fazer com que a
empresa fizesse uma profunda revisão de seus procedimentos de segurança, desse
a maior transparência as suas ações e fizesse uma revisão de sua própria
natureza primordial: deixar de se ver apenas como uma empresa de petróleo, passar
a se considerar como uma empresa de energia, não apenas de petróleo.
Embora naquela época
alguns passos tímidos tenham sido dados na direção desta última preocupação,
com o passar dos anos não se pode dizer que ela tenha se consagrado.
Ultimamente o tema voltou à discussão dentro da empresa. Já nos procedimentos
de segurança e nos investimentos internos na área ambiental que questionamos
fortemente naquela época, houve, sem dúvida algum progresso. Hoje a Petrobras é
mais segura do que no início dos anos 2000. Inevitavelmente, abriu-se uma outra
discussão, a da compensação: a empresa deveria recuperar o ecossistema e de
alguma forma indenizar população atingida: pescadores, catadores de caranguejo,
moradores dos fundos da baía e de Paquetá.
Uma ideia em voo
Nessa época realizei
um voo de helicóptero sobre a região dos fundos da baía da Guanabara. A praia
de Mauá me chamou atenção pela quantidade inimaginável de lixo. Era o ponto
onde as correntes dos fundos da baía carreavam em maior quantidade o que
naquela linguagem meio pedante dos técnicos denominam o “lixo sobrenadante”:
centenas de milhares de garrafas PET, sacos plásticos, pneus, artefatos de
madeira de todo tipo, roupas, sapatos, geladeiras –não as imaginava capazes de
flutuar-- bonecas, brinquedos
quebrados, penicos e tudo mais que se possa imaginar.
A praia era um
vazadouro natural, seus garis, as correntes da baía. Mesmo sobrevoando a algumas centenas de
metros de altura era algo que chamava atenção e indignava. A oito anos da
conferência Rio 92 e oitocentos milhões de reais mais tarde, esse era o saldo
do PDBG, o programa de despoluição da baía da Guanabara, anunciado com pompa e
circunstância logo após a Conferência quando o governo do estado obtivera
financiamentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do banco japonês
JBIC para um ambicioso programa destinado a recuperar a baía.
Quando o piloto do helicóptero subiu mais um pouco foi
possível entender aquela praia no seu contexto ecossistêmico: no passado tudo
aquilo fora um imenso manguezal, com algumas praias de areia branca, de
Guapimirim até Duque de Caxias. Em alguns pontos o mangue sobrevivia mas ali o
processo de degradação fora extremo. Parte do manguezal desmatado para queima
como carvão vegetal e parte fortemente atingida por uma praga de broca que
desfolha e seca o mangue. Privadas da proteção do manguezal a praia e a área
adjacentes foram invadidas pelo lixo. Esse lixo não se limitava aos montões de
cacarecos que eu avistava desde o helicóptero. Havia, invisíveis, camadas
sucessivas dele enterradas: isso no futuro seria o maior obstáculo para a
recuperação da área.
No momento em que o
helicóptero fez a volta, pensei com meus botões: “vamos recuperar esse negocio
aí embaixo porque se funcionar ali é prova que conseguimos recuperar qualquer
outro”. Até a volta ao heliporto da lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, o projeto
Mangue Vivo foi tomando corpo mentalmente e eu estava ansioso para compartilhar
da ideia com o Gil e os demais colaboradores do Ondazul e colocar no papel a
versão original do projeto para apresenta-lo à Petrobras que assim financiaria
a recuperação do ponto mais degradado da baía que recentemente tanto poluíra.
O projeto começou a ser executado em meados de
2001 teve uma primeira fase tumultuada do ponto de vista burocrático e
dificílima in loco. A equipe no
terreno debatia-se com problemas enormes. A primeira ação fora naturalmente
limpar a praia de todo aquele lixo e depois construir uma cerca junto à baía
para impedi-lo de continuar se acumulando aí trazido pela maré. Foi quando
começou-se a descobrir que o lixo na praia de Mauá não era só aquele da
superfície mas que havia camadas sucessivas enterradas e isso dificultava que
as mudas de mangue, os “propágulos”, vingassem.
Havia também dúvidas quanto à estabelecer a largura e o espaçamento dos
drenos, cuja abertura foi a primeira ação física visível sobre a praia livre
das toneladas de lixo que haviam se acumulado na superfície. Foi quando os
drenos começaram a ser cavados que revelou-se o lixo subterrâneo.
Nessa mesma época uma
ressaca poderosa destruiu a cerca e boa parte das mudas plantadas e drenos
abertos.
Não obstante, no
final de 2002, o reflorestamento na praia da Mauá apresentava os primeiros
sinais de sucesso, com todo lixo enterrado, ressaca e dificuldades
financeiras, o mangue começava a brotar
na área mais próxima à antena de rádio do lado esquerdo da praia. Um viveiro de
mudas fora constituído. Tudo aprecia entrar nos eixos graças a essa facilidade
notável que o mangue tem de rebrotar mesmo nas condições mais adversas.
A fase inicial do projeto foi financiada com
recursos da multa paga pela Petrobras ao IBAMA cuja relação era inicialmente
hostil ao mesmo e piorou com a mudança de governo. A relação, por vezes
kafquiana, resultou num conflito que só foi resolvido em 2013 com uma decisão
do Tribunal de Contas da União dando ganho de causa à ONG. De 2002 a 2017, o
projeto foi financiado pela iniciativa privada. Recentemente, quando já passou
de simples de reflorestamento a parque voltou a ser financiado por recurso de
compensação, desta feita da Chevron via Funbio.
Meu papel, em 2000, foi conceber o projeto cuja direção
deixei no final do ano ao virar secretário municipal de urbanismo, no Rio. Mas
continuei esses anos todos como voluntário e “padrinho” daquele mangue. Por lá
passaram ambientalistas como Rogério Rocco e Erian Osório e sobretudo uma
abnegada turma de ex-pescadores locais, incarnada pela figura do Adeimantos. No
período mais recente o André Esteves, meu amigo e colaborador, assumiu a
liderança o projeto e vem avançado resolutamente em direção à transformação da área num parque ecoturístico. Hoje, quase dezoito anos depois, há 80
hectares reflorestados com pés de mangue altos e frondosos, cheios de
passarinhos. Pelo chão, antes infestado de lixo, pululam milhares de
caranguejos. Olho para toda aquela massa verde, meus pés dentro de botas
afundando na lama, e me lembro da discussão um técnico do IBAMA --esse, jovem,
quase do bem-- numa das raras vistorias
que o órgão realizou, penso que essa foi nos idos de 2006.
Eu vinha fazendo uma
série de visitas a Magé, uma delas
acompanhado do ex-presidente da Ondazul, Gilberto Gil, então ministro da
cultura. Havia um monte de jornalistas e cinegrafistas em volta. Plantamos uns
pés de mangue. Naquela época o projeto realizava periodicamente mutirões de
plantio de propágulos com estudantes de escolas e funcionários de
empresas.
Numa das visitas eu argumentava com o engenheiro florestal,
veja isso, veja aquilo, conseguimos, né? Ele fez um muxoxo e argumentou: “ é...
mas tecnicamente o que vocês fizeram tá tudo errado. Não tem a menor
racionalidade plantar mangue numa área dessas! Demora muito e sai muito caro.
Por que vocês escolheram logo uma área tão difícil? Deviam ter escolhido outra
mais favorável.”
Fiquei olhando para
ele meio desconcertado e naquele momento percebi exatamente o que ele não
estava entendendo com seu olhar condescendente. Respondi na lata: “mas, fulano, é precisamente por isso! Porque é
difícil! Escolhemos porque era a área mais degradada do fundo da baía de
Guanabara, desmatada por catadores de carvão vegetal, dizimada por uma praga,
afetada pelo derramamento de petróleo e coberta de lixo, com camadas de lixo
enterradas, foi por isso, precisamente porque era o mais difícil, porque nossa
missão como ambientalistas era recompor um ecossistema degradado e não buscar a
área mais favorável para o plantio. Não estamos aqui falando de agricultura,
nem floricultura, nem reflorestamento econômico: tratamos de recuperação
ambiental, lato senso”. Ele ficou quieto, pensativo.
Vai ver que entendeu, pensei.
O Parque
Vivem-se novos tempos
na região. A área foi legalmente destinada a Parque Municipal e com o projeto junto com o Funbio, coordenado pelo André Esteves, inicia-se uma nova etapa cujo
objetivo é completar o reflorestamento e transformar a área em parque, com
passarelas de circulação pelo alto e torres de observação. Do jeito que está,
apenas o trabalho de reflorestamento, já vem atraindo algumas dezenas de
eco-turistas por mês. Uma vez dotado de uma infra o parque será, acredito, um
sucesso e um imã para uma região tão pobre mas que tem alguns chamarizes como a
igreja de Nossa Senhora da Guia de Pacobaíba e
a estação de trem. Uma dia essa linha férrea da nossa história imperial será
restaurada, podermos passear até Petrópolis numa maria-fumaça--possivelmente
elétrica com a fumaça cenográfica-- e o Parque,
criado sobre o mangue reconstituído,
será parte de um parque maior, linear, ao longo das margens do Rio
estrela.
Há também uma outra
dimensão que eu só compreendi na plenitude lendo algumas as entrevistas, para
um livro que fizemos pela editora TIX sobre o manguezal: o quanto esse projeto
foi transformador e formador na vida das pessoas que dele participaram. Adeimantos,
o peão reflorestador, Antonia Erian, a engenheira florestal, que coordenou, mais
de dez anos, o trabalho no terreno, Rogério Rocco, advogado e ativista,
ambientalista, que atuou na primeira fase. Todos revelam como o projeto mexeu,
para melhor, nas suas vidas. E há um segundo círculo de pessoas: as que
participaram dos mutirões voluntários de descolas e empresas para plantar
mangue, os pescadores, os caranguejeiros, os moradores que em algum momento
interagiram com o projeto de alguma forma. Em todos deixa uma marca, maior ou
menor, mas sempre alegre, positiva.
Sonhos não faltam, vamos ao próximo para tira-lo do papel.
Veja matéria do jornal O Globo sobre o projeto
Uma praia de lixo |
O biguá coberto de óleo |
Vista área da área em 2001 |
No plantio |
A equipe |
Visita com Gil |
André Esteves, coordenador do projeto Parque |
O viveiro |
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