26/03/2019

Lembrando 64

Com 16 anos já na oposição ao regime que inicialmente apoiei
Em março de 1964,   eu tinha 13 anos.  Era um adolescente bastante politizado, lacerdista,  e como toda minha família apoiei aquele movimento que se  autodenominou  Revolução e que entusiastas chamavam de A Redentora. 

 Lembro me das celebrações, na rua Marques de Abrantes, no Flamengo, os carros buzinando, as marchas militares no rádio que ouvi até tarde naquela noite na cama. O Brasil ia mudar, tudo ia ser diferente. Três anos depois, completamente desiludido e, como boa parte a classe média carioca, guinando para a esquerda, passei a considerar aquilo o Golpe de 64. Na verdade,  o que aconteceu nos dias  31 de março e 1º de abril não foi nem revolução nem, ainda, o golpe. Foi uma crise politico-militar, rocambolesca, uma comédia de erros que acabou numa tragédia de 25 anos. O golpe que produziu a ditadura, propriamente dito, ia se dar depois, progressivamente, desdobrado no tempo por sucessivas quarteladas cujo epicentro foi a Vila Militar.

 Para entender toda essa história seria necessário inicialmente decifrar o que diabos sucedeu com nossa democracia da Constituição de 1946. Darcy Ribeiro costumava dizer que o governo Jango Goulart fora deposto “por suas qualidades, não por seus defeitos”. Discordo do saudoso e querido amigo. É bom examinar historicamente como um governo democrático torna-se de tal forma disfuncional, incompetente e fragilizado frente a uma ambição golpista à espreita na oficialidade, desde 1954,  a partir de uma cultura vigente desde os anos 20.  Como o governo Jango consegue alienar e radicalizar contra si próprio a classe média viabilizando politicamente sua própria deposição. Como em num discurso insano para suboficiais sargentos e marinheiros, no Automóvel Club, Jango Goulart promove a quebra da hierarquia, mas, no dia seguinte,  nem tenta seriamente resistir à sublevação de um regimento de Juiz de Fora no que pese seu dispositivo militar legalista ainda poderoso. Enfim, como as ações de Jango, um homem bom –soe suceder em política na aguda observação de Max Weber-- acabou engendrando o mal.

  Sua deposição iniciou-se com a atitude de um oficial desvinculado do núcleo conspirador central.   O general Olympio Mourão Filho, sublevou sua unidade, em Juiz de Fora, seguiu em caminhões para o Rio de Janeiro, telefonando de postos de gasolina,  e foi recebendo adesões. 

 Venceu pelo telefone e conseguiu seus quinze minutos de fama antes de ser rifado por outros chefes hierquicamente mais poderosos como o general Arthur da Costa e Silva.  Havia, de fato,  uma conspiração golpista em curso, inclusive com um plano de contingencia de apoio dos EUA, a operação Brother Sam,  no contexto de Guerra Fria. Mas 31 de março foi uma sublevação antecipada de um general, tido como porra-louca, Olímpio Mourão Filho --que se descrevia como uma “vaca fardada”--  em reação direta ao discurso de Jango no Automóvel Club. Surpreendeu os conspiradores de mais alto coturno como os generais Castelo Branco e Golbery do Couto e Silva.

 Contou com a imediata adesão dos grandes líderes  da oposição civil: Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e, mais relutantemente, Adhemar de Barros, governadores da Guanabara, Minas Gerais e São Paulo. A peça chave de todo processo foi o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, sediado em São Paulo,  amigo de Jango, que decidiu abandona-lo depois que esse, pelo telefone,  se recusou a “romper com os comunistas”. Tudo resultou definido quando Jango fugiu para o Rio Grande do Sul, onde seu cunhado (e desafeto) Leonel Brizola, não conseguiria mais repetir sua façanha de 1961 de sublevar o estado gaúcho e o III Exército.  Logo Jango fugiria de novo para o outro lado da fronteira com o Uruguai. Brizola ainda tentou articular alguma  resistência mas logo se exilou também.

 1964 foi uma brutal crise político militar com um desfecho de sublevação,  fuga presidencial, aprovação da  “vacância” presidencial pelo Congresso  e eleição do general Castelo Branco,  supostamente um presidente de transição até as eleições previstas para 1965 que todos acreditavam seriam  disputadas entre Jucelino Kubischek e Carlos Lacerda, com chances maiores para JK.  O golpe miliar propriamente dito --na verdade, sucessivos golpes--   foram acontecendo na sequencia, por pressão da chamada “linha dura” militar  quando foram editados novos Atos Institucionais, as eleições previstas para 1965 foram canceladas, um novo general, Costa e Silva,  imposto como sucessor de Castelo Branco, eleito indiretamente pelo Congresso.

 A ditadura se consolidou, quatro anos mais tarde, quando  Costa e Silva, diante dos protestos de rua, parlamentares e  das ações armadas,  decretou o AI 5. E se escancarou definitivamente quando “seu Arthur” sofreu um derrame cerebral no Palácio Laranjeiras (até hoje lugar de maus agouros...) e seu vice, Pedro Aleixo, foi escorraçado por uma junta militar até que um novo presidente militar, Garrastazu Médici,  fosse “eleito” pelos quarteis.    

 Os brasileiros ficaram sem o direito de votar e se exprimir livremente,  a imprensa foi censurada e a tortura proliferou e, pela segunda  vez –a primeira foi o Estado Novo--  atingiu a classe média. Nesse ínterim muitos jovens, como eu,  inicialmente felizes com a queda de Jango,  foram se radicalizando e, em protesto à supressão das liberdades acabaram –paradoxalmente—abraçando uma ideologia não menos liberticida,  embalados por um romantismo revolucionário que assolava o continente e boa parte do mundo a partir de 68. 

 Havia também militares, bem intencionados,  que foram soterrados pelos colegas afoitos, sedentos de poder e por muitos civis que ganharam muito dinheiro e roubaram sofregamente à sombra da ditadura. Houve muita corrupção mas naquela época ela não podia ser noticiada. O judiciário foi também completamente dominado pelo regime. Preparado por uma fase dura de austeridade, no governo Castelo Branco/Roberto Campos e a partir da euforia do tricampeonato na Copa de 1970 a economia brasileira “bombou”. Foi o “milagre econômico” logo freado pela primeira crise do petróleo na sequencia  da guerra de 1973 no Oriente Médio. Quando os países árabes que dominava a OPEP aumentaram fortemente o preço do petróleo.




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