Não há muita serventia cívica em ficar
repisando o que já se sabe há tanto tempo: que houve torturas e execuções com
desaparecimentos autorizadas pela cadeia de comando partindo dos presidentes da
república daquele regime. Não é mistério quem as praticou. A Argentina e o
Chile decidiram julgar alguns dos seus torturadores e carrascos. Por outro
lado, o Chile foi forçado a manter Augusto Pinochet, o ditador-comandante, à frente do exército em toda uma primeira fase
de sua democracia. Outros países como a Espanha pós-franquista e
a África do Sul optaram pelo caminho de
não julga-los. A África do Sul no que pese a barbárie do apartheid optou por uma Comissão da Verdade didática, catártica
com o Arcebispo Desmond Tutu. Como todo
respeito a quem sofreu o que não sofri
--escapei da prisão e da tortura-- não vejo como politicamente positivo para o Brasil de hoje anular a “anistia
recíproca” para julga-los, quarenta anos
mais tarde. Penso que isso politicamente oferece holofotes à extrema direita facilitando
seu proselitismo no meio militar. Pavlovianamente potencializa sua narrativa,
lhe faculta novos espaços. E´ um jogo de
soma zero.
Para entender toda essa história é necessário também
decifrar o que diabos sucedeu com nossa democracia da Constituição de 46. Meu
amigo Darcy Ribeiro dizia que o governo Jango fora “deposto por suas qualidades,
não por seus defeitos”. Tenho dúvidas. É bom examinar historicamente como um
governo democrático torna-se de tal forma disfuncional, incompetente e
fragilizado frente a uma ambição golpista à espreita desde 1954. Como consegue
alienar a classe média viabilizando politicamente sua própria deposição. Como
em um discurso insensato para suboficiais sargentos e marinheiros, no Automóvel
Club, Jango promove a quebra da hierarquia, mas, depois, nem tenta seriamente resistir à
quartelada, no que pese seu dispositivo
militar legalista ainda poderoso. Enfim, como as ações desse homem bom –soe
suceder em política, na aguda observação
de Max Weber-- acabam engendrando o mal.
Como uma quartelada de um chefete distante
do núcleo conspirador vence pelo telefone.
Como um segmento extremista da oficialidade, sedento de poder em causa
própria, por sucessivas subsequentes quarteladas
vai estabelecendo a ditadura: supressão das eleições presidenciais previstas
para 1965, perseguições em massa, primeiras torturas e, finalmente, a instituição
de um poder ditatorial truculento e corrupto (lembrem-se de Yolanda Costa e
Silva...) Como a resistência a esse estado de coisas jamais logra unificar-se e
mobilizar a maioria da população pelo restabelecimento da democracia perdida --isso
só acontecerá duas décadas mais tarde-- mas parte para uma ação armada socialmente
isolada.
Nesse contexto de isolamento social a luta
armada acabou favorecendo os segmentos mais duros do regime que superestimaram,
por vezes comicamente, nosso poderio. Só para dar um exemplo, a VPR, no Rio de
Janeiro, na época de suas ações mais espetaculares, o sequestro dos
embaixadores da Alemanha e Suíça e sua troca por 110 presos políticos, tinha menos de vinte combatentes... e duas
metralhadoras. Além dos erros políticos, da visão autoritária e das vítimas de
nossas ações, em situação de confronto, pode-se também atribuir crimes à
guerrilha urbana? Em alguns casos sim. Um marinheiro inglês, de 19 anos,
estupidamente “justiçado”, na praça Mauá. Um militante que queria deixar uma
das organizações executado pelos companheiros por suspeita poder vir a se
tornar um “traidor”. Dois exemplos. Não foram tantos assim mas, a bem da
verdade, aconteceram. E as dezenas de pessoas, alheias a todo aquele conflito, que estiveram em algum momento sob mira de nossas armas ao “expropriarmos” os
bancos nos quais eram clientes ou nos seus carros tomados de empréstimo
revolucionário para uma operação? As vítimas de “acidentes” ocorridos naquelas
circunstâncias...
Aqui
faço um parentesis para complicar mais um pouquinho os lugares comuns de lado a
lado que permeiam esse debate: sim, o que me fez empunhar armas contra o regime
militar foi certamente a opressão daquele regime, particularmente o esmagamento violento do
movimento estudantil. E sim, ao ingressar
na luta armada passei a compartilhar de uma ideologia que não almejava a
democracia mas uma ditadura revolucionária. Mas, sim também, ao contrário da
Argentina, em nenhum momento atuamos
contra um governo democraticamente eleito. Mais: sem poder prova-lo hoje
acredito que um gesto de abertura do regime militar, um calendário de eleições
livres, na época das grandes passeatas de 1968, poderia ter induzido os incipientes grupos
armados a deixar as armas. Mas ambos lados compartilharam da fé inquebrantável em ditaduras virtuosas.
A verdade terá sua serventia se for para
vacinar a sociedade brasileira contra o conjunto de erros cometidos no Brasil,
desde 1946 e não apenas repetir, repisar e reiterar o que todos já sabemos desde
os relatórios detalhados do Tortura Nunca Mais. Foi sábia, ao contrário do que
pretendem alguns, a escolha do ano da Constituição pós ditadura getulista como ponto de partida.
Não faz sentido apenas apurar a verdade para concluir pela milésima vez que a
ditadura militar, de 64 a 85, foi malvada.
Faz mais sentido tentar entender porque ela durou tanto tempo mas, sobretudo, por que antes dela havia fracassado a
democracia.
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