19/08/2018

História de dois debates

Entramos nas fase dos debates e assisti tanto o da Band quanto o da Rede TV. Foram mais ou menos parecidos. Ciro Gomes domina melhor o veículo e consegue ao mesmo tempo aparecer simpático, com fair play e enfático na exposição de suas conteúdos nem sempre convincentes. Alquimin  conseguiu transitar bem em ambos, se sai melhor em debate do que em entrevista com jornalistas. Zero carisma mas de certa forma eficaz e regular. 

 Marina foi mal no debate da Band. Tensa, meio perdida e parecendo centrar fogo em Alquimin uma tática meio duvidosa. Não conseguiu passar esperança nem “presidenciabilidade”. No debate da Rede TV ia na mesma toada, disputando com Álvaro Dias quem é mais lavajatista,  passando uma raiva que não é de sua natureza  e que o senador encena melhor embora perfeito canastrão. 

Mas aí,  ao final do debate da Rede TV,  Marina aproveitou muito bem uma bola que Bolsonaro lhe deixou quicando na pequena área. Foi pródiga em desconstrui-lo naquele terreno mais eficaz, o da sua total indiferença pelas dificuldades reais  das mulheres na nossa sociedade. Num lampejo, Marina conseguiu recuperar o terreno perdido e se colocar como oponente dele num terreno favorável.

 Uma coisa clara a respeito de Bolsonaro é que as indignações clássicas da esquerda e das tribos identitárias apenas o favorecem. A ditadura e a tortura já entraram para a história e, no que pese o esforço descomunal feito no período petista para tematizar obcessivamente aquele período tentando a revisão da anistia recíproca que a correlação de forças em 1979 permitira e que depois fora inscrita na Contituição, o assunto nunca “pegou” para a grande maioria da população. 
Cansei de avisar os defensores dessa política, os sinceros e os oportunistas, de que tratava se de um equivoco. 

 Também a denúncia da homofobia não funciona contra ele. Seu público o aprova e a maioria da população brasileira é conservadora, tem um posicionamento nuanceado: concorda que as pessoas não devem se perseguidas e estigmatizadas por sua opção sexual, tende a considerar opção sexual algo de "foro íntimo" e tende a desconfiar de quem dela faz uma questão de "orgulho” e tem uma percepção --certa ou equivocada, não importa--  de que há um proselitismo da opção homoafetiva na mídia e, onde se torna problemático mesmo para conservadores que julgam não ter melhor preconceito:  uma questão de educação sexual nas escolas. 

 Também cansei de aconselhar lideranças gays de que não deveriam confundir discurso de movimento com política de governo e que a questão é de diretos civis e não de educação sexual.  

 Bolsonaro não será derrotado por confrontos culturais/identitários nem guerras do passado. Sua vulnerabilidade é o futuro: que futuro traria as soluções simplórias que propugna? Em que esse futuro é pior não apenas para essas minorias vocais mas para a grande maioria do povo brasileiro da qual, obviamente, fazem parte as mulheres? 

   Foi ali que Marina marcou um golaço quando mostrou que não basta mencionar o que existe na lei e pretender que a desigualdade de remuneração por trabalho igual é um "problema da iniciativa privada". É obvio que o governo precisa se envolver nessa questão com o arsenal legal e normativo que dispõe e o(a) presidente,  como grande vocalizador (a),  tem um papel a desempenhar, ao contrario do que ele afirma.

ARMAI VOS UNS AOS OUTROS

 O mesmo se aplica àquele seu deus-ex-maquina de armar a população. A disseminação massiva de armamento na população –modelo EUA—só irá agravar a violência e o morticínio. Multiplicar-se-ão as mortes por discussão no trânsito, brigas conjugais, brigas de bêbedos, etc... e, sobretudo, nas tentativas de resistir a assaltos tentando puxar uma arma. 

 Bolsonaro é o melhor exemplo do quanto há de demogogia na sua proposta. Ao ser assaltado na sua motocicleta ele, embora ex-capitão do Exército e, portanto, bem treinado para usar a arma da qual se orgulha não resistiu. Não tentou puxar  sua pistola Glock. Quer agora convencer toda uma população, a começar pelas mulheres,  de que possuir e portar armas é uma solução para lidar com os assaltos?

 Quanto sofrimento futuro existe por traz do discurso de se “endurecer” em relação ao aborto?  Tenho idade suficiente para me lembrar daquele personagem carioca,  dos anos 50, o famoso delegado Padilha.  Mandava jovens enfiar um limão por dentro da calça. Se não passasse é que a calça era apertada demais e quem a vestia com certeza veado.  Pois o Padilha promoveu uma ofensiva contra as clínicas de aborto no Rio fechando-as e prendendo os aborteiros. 

 O resultado disso e de outras ofensivas análogas, em outros estados,  foi um forte incremento da mortalidade feminina por tentativas de autoaborto. Depois daquilo, nem na época do regime militar foi tentado novamente. 

 Por alguma razão todo mundo sabe onde elas  funcionam com seus nomes de santo e nada acontece. Pagam pedágio à polícia e fica por isso mesmo. Nem a Igreja tenta seriamente obter a repressão pois todo sabem a tragédia que resultaria.

 Isso institucionaliza, de fato, uma situação onde as mulheres de classe média fazem aborto em relativa segurança e as pobres em condições perigosas e precárias. Por essa razão –que Marina também não consegue entender direto— pessoas sensatas, que desejam ir diminuindo seu número e um dia chegar ao aborto zero,  defendem a legalização. Marina, encalacrada na respeitável contradição entre sua fé religiosa e essa realidade brutal propõe um referendo que, atualmente,  favoreceria o proibicionismo. Bolsonaro resolveu tentar questioná-la por isso mas foi contra-atacado com a crítica ao seu gestalt teatralizando o  armamento para crianças.

 Fui crítico do postura da maioria da esquerda quando do referendo do desarmamento. Votei nulo. Achei o referendo mais um equivoco do discurso “politicamente correto” mas totalmente equivocado. Minha razão era simples: tinha que se começar a desarmar pelo armamento de guerra, privativo das Forças Armadas,  nas mãos dos bandidos antes de se preocupar com o velho 32 do seu Manuel (que é um cara nervoso). 

 Já tive meu tempo de fetiche das armas (fui campeão de tiro ao alvo) mas hoje não possuo arma. Porem entendo quem se sinta mais seguro de ter uma na fazenda ou em casa. Isso é diferente do discurso de querer armar massivamente a população para combater bandidos. Se achamos 60 mil mortos por ano muito, aguardemos esse futuro que o Bolsonaro nos promete...

SEU NOME EM VÃO

 Voltando ao debate. Marina então encontrou o filão para uma esgrima mais eficaz com essa extrema direita que parece ter hipnotizado pessoas de todas as classes sociais: discutir o “prafrentmente” não o retrovisor. Aí tentaram leva-la para uma polêmica no campo religioso. Ela reluta pois  tem uma visão correta de estado laico. Mas ela é mais do que apta a debater nesse campo que Bolsonaro e seu Robin, o inacreditável cabo Daciolo. Eles se aventuram a polemizar com ela no terreno bíblico por sua conta e risco. Deveriam começar por seguir aquele grande preceito bíblico comum ao judaísmo e ao cristianismo: não use em vão o nome do Senhor.

 Bolsonaro,  que se saíra bastante bem nas entrevistas com jornalistas, tanto os agressivos do Roda Viva quanto os ponderados da Globo News,  não foi bem nos debates. Ele consegue vestir as sandálias de uma certa humildade esperta e fazer de gente-como-a-gente quando é o grande foco das atenções, como nas entrevistas. No ambiente competitivo dos debates ele já se dá pior pois deixa transparecer irritação, raiva, um olhar meio doido (que deixa no chinelo aquele famoso do Collor), sacude-se e fica visivelmente frustrado em não passar seus “talking points” com aquele misto de candura e provocação. 

 Não sabemos ainda se a aparição –meu Deus—de um personagem a sua direita faz parte de uma tática combinada ou é de fato concorrência mas isso também contribuiu para coloca-lo numa zona de desconforto nos debates.

 Guilherme Boulos  cumpriu com eficiência o papel que se propôs.  É conciso, claro  e tem lá seus achados. Penso que marca pontos politicamente dentro do campo para qual se delimitou e permitirá fazer crescer o PSOL na juventude. Aliás é o único jovem do elenco. Seu senão é aquela arrogância típica da extrema esquerda. Quem é da tribu adora mas ela não necessariamente cai no gosto de quem não é. 

Não amplia embora reconforte e tonifique aos afins.  Faz o contraponto simétrico da extrema-direita e corre o risco de ser nivelado como tal. Ainda não foi chamado a explicar como,  diabos,  o cabo Daciolo pôde alguma vez ser aceito no PSOL a ponto de ter conseguido se eleger deputado federal pelo partido, antes de ser expulso por razões que se podem facilmente imaginar. 

 Embora seja injusto --não existe equivalência nem política nem moral entre ambas--  no imaginário popular os extremos se tocam. 

 Já o Meirelles é um personagem a parte. No primeiro debate disputou com o Daciolo o papel da pior imagem televisiva. No segundo conseguiu articular-se um pouco melhor. Sua mensagem pode resumir-se a: “gestor financeiro experiente (mas sem imaginação nem visão histórica) procura uma aliança de segundo turno que  lhe permita continuar sendo o tzar da economia brasileira para por em prática receita clássica  (neoliberal, direis) que permitir-lhe-a arrumar a economia brasileira um dia, não se sabe quando, a preço social proibitivo e cruel”. Sai de baixo...

 Ah, sim, o púlpito vazio. Ninguém sabe como será a entrada em cena do Fernando Haddad. Bom sujeito, moderado, amigo de Fernando Henrique, destinado a representar in absentia um Lula, indignado,  injustamente preso mas justamente responsabilizável por toda roubalheira destinada a custear o hegemonismo petista. Haddad pode, malgré lui, como diriam os franceses, acabar encarnando o PT na sua era Gleisi, totalmente afastado do centro de gravidade da política brasileira, sem um pingo de autocrítica em relação aos erros cometidos e decididamente puxando a corda para um lado enquanto Bolsonaro puxa para o outro. É, possivelmente,  o adversário de segundo turno dos sonhos do Jair. Novamente malgré lui.


 Putzgrila, como se dizia antigamente.

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