A PEDIDOS A INTEGRA AO ARTIGO QUE ESCREVI SOBRE CUBA EM JANEIRO:
Reflexos do Malecón |
Para onde caminha a transição cubana? Já deixou de ser socialista, pelo menos à maneira de Fidel. Mais que os próprios investimentos do grande capital internacional em turismo a tração rumo a uma economia de mercado vem da viração emprendedora dos cubanos no seu dia a dia. O potencial econômico da ilha parece extraordinário, a médio prazo. Seu grande desafio futuro será o da sustentabilidade sócio-ambiental, inclusive em relação a essa cidade extraordinária, única no mundo: Havana. Parada no tempo ela virou vintage...
A seguir, minhas reflexões sobre a ilha, 55 anos depois da revolução que tanto marcou nossa geração.
Embora
tenha realizado uma visita totalmente turística, sem nenhum contato político
nem no campo oficial nem na oposição, não pude deixar de fazer-me esta pergunta
com olhar e ouvidos atentos aos cubanos comuns, uma gente calorosa e acolhedora
na sua imensa maioria, independente de
credo, raça ou ideologia. Minha pergunta mental era sempre essa: isso aí para
onde vai? Donde vá? Não se trata mais
de socialismo versus capitalismo, isso aí é jogo jogado há tempos muito embora na
avenida para o aeroporto José Marti um outdoor
pontifique: los cambios son para mas
socialismo! (as mudanças são para
mais socialismo!). Mas Cuba já é hoje
intrinsecamente capitalista... apenas a sua maneira peculiar.
O
grande capital internacional da indústria turística investe pesadamente e
repatria seus lucros --com mais facilidade que no Brasil-- dos ressorts praticamente exclusivos para
estrangeiros que privatizam as mais belas praias da ilha. Mas esse fato
econômico não é o mais determinante. O que mais aproxima Cuba do resto do
planeta “de mercado” --cuja única exceção, de fato socialista, é a implacável Coreia
do Norte do camaradinha Kim Yong-un-- é esta pulsão empreendedora da grande maioria
dos cubanos quebrando a cabeça a todo momento para ganhar algum por conta
própria.
Não foi a toa que Fidel resistiu enquanto pôde
contra esse espirito presente no mais exíguo dos paladares (restaurante doméstico), no mais decrépito dos taxis
informais na mais miudinha das feiras de camponeses ou de artesãos: ali viceja
o vírus empreendedor e o sonho de prosperar. Para o bem ou para o mal, já contaminou a imensa maioria. E não dá nem
para culpar “resquícios da ideologia pequeno burguesa”, a cinquenta e cinco anos da revolução que
deveria produzir el hombre nuevo,
coletivista. É a própria economia “socialista”
--o país como uma grande repartição pública fingindo que paga uma população de barnabés
que fingem que trabalham-- quem induz os cubanos a esse empreendedorismo de
sobrevivência numa multifacetada e onipresente economia capitalista informal.
Atualmente Cuba tem duas moedas. A primeira o
peso cubano que paga os salários cuja média é vinte dólares. Todos têm carnês
de racionamento que permitem comprar uma cesta básica a um preço viável mas,
segundo todos cubanos que se referiram ao assunto, ninguém consegue viver mais
de uma ou duas semanas pela libreta
cujo leque de produtos, além disso, é muito limitado. A outra moeda é o peso
conversível que vale mais que o dólar –mais ou menos 85 cents de dólar-- e alimenta o
mercado livre: as lojas de conveniência, os restaurantes, os bares, os serviços
aos turistas, os taxis. Fiz uma corrida de taxi à noite entre um local noturno,
em Miramar, e o Hotel Habana Libre,
relativamente perto, que me custou 25 pesos conversíveis. Mais que o salario
médio mensal na parte da economia ainda “socialista”.
Performáticos da Habana Vieja atrás do peso conversível
|
"Escritório de interesse" dos EUA,
uma espécie de embaixada informal desafiada por um paliteiro de bandeiras cubanas |
Como fazem os cubanos para sobreviver? A
resposta vem na forma de um caleidoscópio de expedientes e de relações que
permitam o acesso ao peso conversível.
Ali também se desenha a grande linha divisória entre os com acesso e os sem acesso à mágica moeda
conversível obtida na troca por uma divisa estrangeria basicamente o euro e o
dólar. São duas as fontes de divisas: a remessa familiar de cubanos exilados ou
residentes no exterior ou uma transação qualquer de prestação de serviços ou
comércio com os turistas que visitam Cuba em contingentes cada vez maiores.
Um dos
melhores caminhos é ser o feliz motorista de algum dos Oldsmobiles, Mercurys, Fords, Studebackers, Cadilacs americanos,
dos anos 30 a 50, ou de algum Lada ou
Trabant soviéticos e alemães orientais,
dos anos 60 e 70 ou, melhor ainda, de um desses importados mais recentes que se
vê no trânsito junto com todos aqueles fotogênicos calhambeques vintage.
Praticamente todos os cubanos motorizados funcionam em algum momento
como taxistas informais. Uma diária para
passear por Havana num sensual Ford bigode de capota conversível, dos anos 30,
anda lá pelos 60 paus (também conversíveis). Rodam com gasolina venezuelana,
subsidiada. Imagine-se a tensão social latente entre os “com carro” e os “sem-carro”,
os com peso conversível e os sem. Cuba possui os motoristas, vendedores de
fruta ou souvenir, atendentes de hotel, guias turísticos, músicos, atores performáticos
--e, segundo os maledicentes, as garotas de programa-- mais bem formados do
planeta com diploma de nível superior. Durante um dia de
caça ao peso conversível conseguem ganhar mais do que em um mês de salário.
Parece evidente que isso é insustentável a
médio prazo. A saída, já definida pelo
regime, é acabar com o peso cubano não-conversível, enxugar a máquina pública --com centenas de
milhares de demissões-- para poder, elevar os salários a níveis mais compatíveis
com a moeda conversível. É uma operação complicadíssima ainda sem data marcada
embora demissões já estejam acontecendo.
Num dia de semana, em Havana, se vê muita gente aparentemente sem ocupação, a
esmo. Particularmente ao longo do Malecón, a avenida litorânea, a qualquer hora do dia, contemplando o mar em
busca de respostas.
“Raul chegou ao máximo do que é possível na
atual etapa histórica”, acredita uma amiga, veterana insider
que já ocupou funções de grande responsabilidade. A frase demonstra um
sentimento bem cubano de quem decididamente gostaria de mudanças mais
estruturais, na economia e na política, mas, ao mesmo tempo, tem medo do que possa sobrevir. Da primavera
árabe às manifestações nas cidades turcas
e brasileiras, no ano passado, o mundo
anda pródigo em explosões de certa forma inesperadas e que raramente, diga-se
de passagem, levaram às conclusões
almejadas. Dito isso nada parece indicar que apesar do descontentamento generalizado
com o regime e com a vida cotidiana, Cuba esteja prestes a viver uma “ruptura”. Com
paciência e ironia infinitas –aquelas mesmas virtudes que Lenin atribuía aos
bolcheviques-- os cubanos investem uma
certa esperança nas mudanças de Raul.
No Museu da Revolução míssil anti-aéreo SAM 2 do tempo da crise dos foguetes de 1962 |
Por mais que internacionalmente se preste
muita atenção –e compreensivelmente- ao discurso da oposição, apenas tolerada e
aprisionável a qualquer momento, o estado de ânimo da grande maioria da
população parece ser mais esse outro: de expectativa mas receio. Trocado em
miúdos: com Fidel, vivo, a direção do partido dificilmente dará passos para
além do que ainda possa ser racionalizado no discurso como medidas “dentro” do
sistema que não desmintam escancaradamente a suposta essência socialista do
dito cujo. Claro, os chineses com seu componente de capitalismo selvagem, sua desigualdade abissal e seus magnatas bilionários sentados no
comitê central continuam se referindo ao socialismo “com características
chinesas”, ao marxismo-leninismo e ao pensamento do camarada Mao. Em tese, nada impediria a direção cubana de
fazer o mesmo. Tenho a impressão, no entanto, que dificilmente uma abertura econômica no estilo
chinês deixaria de ter fortes consequências de natureza política no contexto
histórico, cultural e geopolítico da ilha. Adotar cinicamente os
contorcionismos semânticos dos chineses dificilmente resistiria ao senso de
humor e picardia dos cubanos.
Uma transformação econômica profunda rumo ao
mercado parece praticamente inevitável dentro dos próximos cinco a dez anos. A
questão que se coloca é como será essa transição e em que resultará. Gorbachev começou pela abertura política, a perestroika, e perdeu o controle do processo frente à
questão nacional. O império se desagregou pelas forças centrífugas dos nacionalismos
dentro da URSS. Depois a economia e a sociedade sofreram terríveis traumas, nos
anos de Boris Yeltsin, com os “tratamentos de choque” de inspiração neoliberal. A “normalização”
veio com Putin e seu regime semi-ditatorial gênero bonapartista. A economia
estabilizou-se num capitalismo de
compadrio baseado no alto preço do petróleo e gás.
Na China,
Deng Hsiaoping e seus sucessores começaram pela economia obtiveram um
sucesso fantástico no que pese os problemas que enfrentam agora ambientais e
outros. Socialmente todos chineses progrediram embora no bojo de uma
desigualdade muito acentuada. Politicamente o regime continua fechado e
autoritário não obstante o fato da grande maioria dos chineses experimentar nas
suas vidas pessoais graus de liberdade individual
sem precedentes na milenar história do país. Uma minoria ativista é brutalmente
reprimida ainda que formas variadas de protesto sejam toleradas. O Vietnam no
essencial segue uma trajetória comparável. Já a Coreia do Norte se aferra ao comunismo puro e
duro fuzilando os que olhavam para o exemplo chinês. Parece cultivar, oitenta
anos depois, a máxima stalinista do “socialismo em um só país”. Já a maioria dos países do ex-bloco soviético
viveu transições mais ou menos tumultuadas mas, afinal, bem sucedidas para uma integração efetiva com
a Europa capitalista com grande progresso político e social no que pesem
fenômenos específicos preocupantes como o avanço da extrema direita
na Hungria e na Polônia. Em algum
desses processos todos há insights para uma transição cubana? Cuba, no que pesem
certos privilégios que o poder político confere aos altos dirigentes do
partido, ainda apresenta uma sociedade
economicamente bastante igualitária, nivelada na sua penúria.
Economicamente o potencial de Cuba é
simplesmente extraordinário se, de alguma maneira, conseguir formatar-se para receber
investimentos sobretudo dos cubanos radicados nos EUA. Nem tanto de grandes
empresas quanto de uma multidão de pequenos e médios investidores potenciais dentre
aqueles cubanos que fizeram fortuna nos Estados Unidos, seus filhos e netos. Para tanto vai ser
necessária a reconciliação. Hoje ela está ficando menos difícil, na medida em
que na diáspora vão envelhecendo e minguando os líderes linha dura –que frequentemente apoiaram o terrorismo— e vão emergindo, sobretudo no meio
empresarial, outros mais pragmáticos e abertos ao diálogo. Mas é sobretudo do
lado do regime que serão necessários gestos práticos de apaziguamento, acolhida
e conciliação. Esse é um processo já em curso de maneira incipiente e discreta.
Se circunstâncias políticas o permitirem,
existe uma abundante disponibilidade de investimento em condições inacreditavelmente
favoráveis: proximidade geográfica, mão de obra abundante a custo reduzido, uma população bem instruída, segurança, belezas naturais fantásticas e uma capital,
Havana, que é um paraíso cenográfico em
potencial. O grande obstáculo é esse clinch
de cinco décadas entre dois pugilistas cansados, essa relação passional cubano-norte-americana,
qual dupla barraqueira divorciada, que ama se detestar com todas as fibras do
coração no que pese o passado promiscuamente próximo do qual não há como fugir.
Em Havana, junto à cidade velha,
avistamos essa réplica quase perfeita do Capitólio de Washington que está sendo orgulhosamente restaurada.
Pelos cantos baldios da cidade há jovens jogando baseball. Praticamente todo
mundo é fluente em inglês e capaz de passar horas falando mal (ou
bem) dos yanquis e de suas coisas.
Nesse sentido gestos simbólicos,
“subjetivos”, como o aperto de mão de Obama com Raul Castro
têm um efeito potencial maior do que parecem. Não chego a entender muito bem
porque Obama, já no seu segundo mandato, sem tanta ameaça dos republicanos
cubano-americanos da Flórida, não anula as sanções econômicas que dependam de
ato presidencial –outras condicionadas a decisões do Congresso, são mais difíceis— e não liberta os cinco agentes
cubanos presos na Flórida como “espiões”. Poderia anistia-los e, até, incluir no pacote, à guisa de compensação, o espião israelense Jonathan Pollard o que até
ajudaria os esforços de John Kerry para levar o governo de Netanyahu a ceder alguma
coisa aos palestinos. Exigir “concessões politicas” prévias de Raul Castro não parece ser o caminho mais inteligente de
para conseguir uma maior democratização na relação do partido/estado com a
sociedade cubana. É mais plausível imaginar que ela resultará de uma situação onde
o empreendedorismo floresça, onde a economia melhore e deixe de ser
exclusivamente dominada pelo poder político com o surgimento de polos plurais de
interesses dentro do sistema. A diversidade econômica tende a estimular a política
embora não de uma forma automática ou linear.
Um dos mais evidentes dilemas do regime, a
curto prazo, é o que fazer com a internet. Até agora a resposta tem sido
dificultar ao máximo o acesso. Mesmo para os turistas estrangeiros nos hotéis
praticamente vedados aos cubanos é uma dificuldade absurda. Imagine-se então para
o cidadão cubano comum! Alguns como a blogueira opositora Yoani Sanches dão seu
jeitinho cubano mas a sociedade como um todo ainda é pre-internet e isso
conquanto de alguma forma proteja o regime representa um fator de atraso
gigantesco para o país como um todo. O
chineses lidam com esse assunto de forma contraditória: permitem a instalação
da base tecnológica e do acesso e instituem um esquema de censura e bloqueio de
certos conteúdos mediante um controle gigantesco “a grande muralha” mas, ao
mesmo tempo, toleram e até tentam tirar partido do weibo o twitter chinês, bastante crítico e contestador dentro de
certos limites. Essa questão será uma das mais cruciais a ser observada no
futuro imediato, em Cuba. No caso da
telefonia celular a tecnologia já foi absorvida e implementada e funciona
razoavelmente bem, inclusive o roaming.
Da frota vintage |
O gradualismo com que as tímidas reformas
econômicas vêm se dando apresenta certas vantagens pouco evidentes aos adeptos
de “terapias de choque” do estilo russo e leste europeu. O dilema de fundo cubano
não é mais “se” economia de mercado mas “que” economia de mercado. A grande
discussão em Cuba provavelmente girará em torno da sustentabilidade social e ambiental
dessa nova economia por vir. Simplificando metaforicamente: a opção futura será
entre virar uma mega Costa Rica ou um hiper Panamá.
Costa
Rica fez sua revolução, em 1948, liderada
por Don Pepe Figueres. Derrubou a oligarquia e a burguesia “compradora”, nacionalizou
os bancos mas instituiu um regime democrático exemplar –embora cercado por
ditaduras de todos os lados-- e soube administrar melhor sua relação com os
EUA. No que pese ter encampado a famosa United Fruit, La Frutera, nunca se aproximou da URSS e preservou boas relações
com os democratas norte-americanos. Pepe Figueres aboliu o exército --o seu, o
revolucionário!-- separou os poderes da república garantindo um
judiciário independente e priorizou obsessivamente a educação. A Costa Rica é
hoje de longe o país mais próspero de melhor IDH da região com uma população
majoritariamente de classe média. Cuba poderia ser mais. Tem uma natureza quase tão exuberante, já possui uma indústria
turística considerável que poderia ganhar muito em escala e também em
qualidade. Sua população é bastante instruída com nichos de excelência. Como atratividade urbana não há comparação possível
entre San José --uma cidade razoavelmente sem graça-- e Havana, simplesmente magnífica.
Sua história política e econômica está
fisicamente plasmada na sua arquitetura. Havana parou de crescer no início dos
anos 60 quando se deu o rompimento da revolução com os EUA e a
partida da burguesia local e, depois, da maior parte da classe média. Havana
era uma cidade cosmopolita que havia recebido na primeira metade do século XX
muito mais investimento que qualquer outra da região. Possuía uma arquitetura
de qualidade, por sobre o tradicional urbanismo hispano e um patrimônio considerável herdado da era
colonial. Hoje Havana é uma bela cidade
dos anos 50 completamente deteriorada. Os edifícios estatizados deixaram de ser
conservados e aparentemente não há nem uma elementar organização condominial
para mantê-los. Esse desapego surpreendentemente se estende ao espaço público: muito lixo atirado na rua o que é
constrangedor haja vista a onipresente organização territorial do regime,
nos bairros, através
dos CDR (comitês de defesa da
revolução) que para além de bisbilhotar a vida das pessoas poderiam bem
mobiliza-las contra fazer das ruas lixeira. Dentre o casario dos antigos bairros nobres e
de classe media --que lembram de certa forma os jardins paulistanos-- uma boa parte das casas está ainda abandonada.
Noutras se alojam instituições públicas diversas que pouco as conservam. Há muitos pequenos prédios art deco gênero Miami Beach também muito deteriorados.
Havana
possui, é certo, um amplo e consistente
programa público de restauro, reconstrução e retrofiting em curso, sobretudo na velha Havana e ao longo do
Malecón mas dada a amplitude da degradação a escala do projeto conquanto
considerável ainda representa uma proporção relativamente pequena das belas edificações
decaídas. E fica no ar a pergunta: com funcionará, depois, a conservação dos prédios e casas
restaurados? No entanto,
se imaginarmos esse trabalho com um aporte massivo de investimento numa
escala futura muito maior podemos vislumbrar uma cidade inteira esplendidamente
restaurada, única no mundo, uma imensa Cartagena.
Demandará grande tirocínio na estruturação de
uma nova economia urbana fazer com que abundantes capitais fluam para o
restauro e a revitalização e não simplesmente para uma “renovação urbana” de
tipo especulativo com quarteirões inteiros demolidos para dar lugar ao lixo
arquitetônico envidraçado que vi dias mais tarde, ao deixar Cuba, na cidade do
Panamá. Uma inquestionável realização do comunismo cubano, quiça involuntária, foi a de ter evitado os horrendos ciclos
arquitetônicos dos anos 60, 70 e 80. Foi
uma vitória da revolução por assim dizer, malgré
elle. Alguns prédios e equipamentos
públicos, não menos horripilantes, foram erguidos aqui e ali na era soviética. Mas felizmente foram poucos.
Nesse caso a penúria de capital foi
providencial!
Isso não significa que o futuro tenha que ser
exclusivamente de uma cidade histórica/cenográfica restaurada. Numa cidade sadia cabem sem dúvida os
perímetros com prédios altos num zoneamento bem pensado, com usos múltiplos e sentido urbanístico. Havana necessita
de gigantescos investimentos em
infraestrutura de água, esgotos, rede elétrica, iluminação pública, comunicação
a cabo e pavimentação e nisso o Brasil poderá ajudar. Seria providencial e
vital que essa urbe bastante plana, bem arborizada, de muitas largas avenidas se dotasse de uma
abrangente malha cicloviária, antes da explosão automobilística que se
prenuncia. Aí novamente o dilema é o da sustentabilidade ou não do modelo urbano por
vir. Pela importância que o automóvel hoje possui no imaginário e na vida
prática dos cubanos o risco de uma explosão automotiva que inviabilize previamente
uma mobilidade pública, coletiva e individual eficiente é muito grande. O risco é a cidade ficar infernalmente
engarrafada antes de conseguir se dotar de uma estrutura de VLT, BRT e malha cicloviária,
integradas, com o automóvel sob controle.
Uma presença turística intensa |
Na cidade do Panamá pude presenciar exatamente
o caos que um boom automotivo pode
provocar sobre uma cidade de porte médio
sem a capacidade --nem necessidade!-- de
receber toda essa massa absurda de veículos. Os engarrafamentos de um trânsito “hobesbiano”
são inacreditáveis mesmo para os mais acostumados sofredores cariocas ou
paulistas. Uma via expressa absurda para o aeroporto está sendo construída sobre pilotis no meio
da baia do Panamá provocando assoreamento e recuo de centenas de metros no
espelho d’água. Havana, no futuro, correrá o risco extremo de um estupro
automobilístico idêntico, se não se precaver. Amigos cubanos me explicaram que
houve um momento de auge da bicicleta –eram chinesas, importadas--
mais recentemente sepultado pelo boom
automobilístico que apenas se inicia alimentado pelo petróleo venezuelano e
pela liberalização na compra e venda de carros. A bicicleta –cujo uso é
desconfortável por causa da má pavimentação-- passou a ser vista como out da mesma forma que ocorreu nas cidades chinesas onde, no
entanto, seu uso ainda é muito significativo juntamente com as motos
elétricas.
O desafio da
sustentabilidade social numa futura transição é ainda mais evidente: o
inevitável “enxugamento” do setor público associado ao fim do peso
não-conversível e da libreta contem
elementos potencialmente explosivos conquanto sejam medidas econômicas
absolutamente necessárias. A questão toda será a de que forma uma economia de
mercado, com investimentos sobretudo em pequenos negócios, conseguirá compensar
esse processo. Embora o espírito
empreendedor, o superavit de instrução, alguns nichos de alta tecnologia e a
disponibilidade potencial de investimento sejam elementos com os Cuba poderá
eventualmente contar, é inevitável que o processo seja pontuado por
dificuldades e tensões. E aí que a experiência dos “choques” russo e leste
europeus indica que é preferível dispor de um poder de estado regulador forte e
adotar um ritmo gradualista. Será possivelmente a forma de evitar o tal hiper
Panamá: um capitalismo agressivo, sem
limites ou critérios, especulativo e predador.
Qual o sistema político que poderá melhor gerir
essa transição? Essa é a pergunta talvez mais difícil de responder. Aquelas
ocorridas desde os anos 90 na Europa oriental, Ásia e mundo árabe, não mais nos
autorizam ao simplismo de pretender que bastaria estabelecer uma democracia pluralista
--que praticamente nunca existiu em Cuba--
autorizar partidos, convocar eleições livres e convidar
investidores. É claro que a situação atual de cerceamento das liberdades, monopólio
sobre a imprensa escrita e as demais mídias, falta de acesso à internet e controle
social truculento via policia política e
CDRs, é insustentável e, como já mencionei, a opção chinesa de abrir no econômico mantendo o político arrochado não parece ser factível
a médio prazo, em Cuba.
O cenário mais realista parece ainda ser o de
uma transição gradual e progressiva, no político e no econômico com contrapesos
e garantias das conquistas sociais e, muito particularmente, do alto grau de segurança e baixíssima criminalidade violenta que Cuba
apresenta, contrastando com o massacre urbano que grassa em praticamente toda
América Central e Caribe, com exceção da Costa Rica. É o
caso de se torcer por uma transição econômica social e ambientalmente sustentável
que também termine promovendo uma abertura política segura até o
estabelecimento de uma sociedade livre, plural e democrática a menos
conflituosa e revanchista possível. Cenários, piores também pode ser imaginados
envolvendo confrontos graves. Esperemos
que saibam evita-los. Muito vai depender das duas instituições hoje dominantes:
o exército, cujo papel inclusive econômico é cada vez maior, e o partido.
Do outro lado, terá influência a postura
política do segmento do exílio disposto a um diálogo e, naturalmente, do
governo norte-americano com sua inegável capacidade de boicote ou,
inversamente, de ajudar a potencializar uma abertura, sempre que levante as sanções e desista de
ditar a priori suas regras. Daqui a dez anos Cuba provavelmente será
bastante diferente do que é hoje, resta saber por quais caminhos. Aplica-se a Cuba aquele ensinamento de
Marx –não de Karl mas do Groucho-- segundo
a qual “é muito difícil fazer previsões sobretudo quando se referem ao futuro”.
A verdade é que vai mudar mas ninguém sabe direito como e quando. Mas quem
viver, verá.
Havana entardecer |
Nenhum comentário:
Postar um comentário