Vivemos
como em 1968 um ano de mobilização planetária. Povo na rua em toda parte.
Possivelmente a maior de todas as manifestações desse ano “quente” foi a
do Cairo que precipitou a queda do presidente Mohamed Morsi, da Irmandade
Muçulmana.
Segunda
onda revolucionária de “primavera árabe”? Golpe de estado? Democratas pelo
mundo afora sentem-se literalmente “embananados” para definir o que acaba de
ocorrer. Sua leitura pode ser de um “recall” popular,
prerrogativa que, na ausência de mecanismos institucionais
regulares, foi exercida na rua, aos milhões ou o velho golpe militar
igualzinho tantos outros. A resposta final virá com o tempo.
O
governo Morsi era legítimo, eleito por uma maioria clara, ainda que estreita,
no segundo turno de uma eleição reconhecidamente limpa. Mas, seguindo a visão
sectária e facciosa do seu partido islâmico, anti-laico,
ele entendeu que essa precária maioria o legitimava para governar de
maneira hegemonista, sem um mínimo de pactuação com as oposições.
Permitiu-se naquela democracia tão recente e precária uma espécie de
chavismo islâmico, com a grande diferença que Chavez nunca chegou --salvo em um
único referendo-- a perder a maioria enquanto Morsi teria certamente sido
derrotado se tivesse convocado eleições antecipadas, como queriam as oposições.
Raras vezes um governo irritou a tanta gente em tão pouco tempo. Em menos de um
ano Morsi isolou-se completamente e gerou uma revolta passional de milhões.
O
Egito estava mergulhado há vários meses numa profunda crise institucional
exacerbada por --e exacerbadora de-- uma outra brutal: a da
econômica à beira do abismo. Fuga de investimentos, colapso do turismo,
queda do padrão de vida com salários corroídos, aumento do desemprego, preços
fora de controle, constantes apagões. Em termos macroeconômicos, o beco
sem saída: reservas esgotadas a mercê dos EUA, do Qatar e da Arábia Saudita
para poder continuar alimentando o povo que depende de trigo subsidiado.
Por outro
lado o colapso institucional: o Congresso suspenso por ter sua eleição
contestada judicialmente, a Constituição, redigida sem as oposições e
referendada por uma estreita maioria relativa, muito pouco expressiva pelo
baixo comparecimento.
Uma
democracia balbuciante, engatinhando, sem uma base política ampla sob uma
cultura milenar de autocracia foi sendo comprometida por uma facção sectária,
hegemonista cujo objetivo declarado era impor um regime confessional e
introduzir pouco a pouco a sharia. Morsi tentou várias vezes
assumir poderes ditatoriais tentando açambarcar o legislativo e
o judiciário.
A
Irmandade, avessa ao diálogo e certa de estar servindo a Deus,
tentou assumir o controle total das instituições a pretexto de que era
preciso expurga-las do pessoal da era do regime de Hosni Mubarak. Mesmo a sua
tradição de atuação não-violenta começou a ser posta em dúvida pela organização
de grupos de choque que se temia em breve converter-se-iam em milícias
islâmicas.
Morsi
multiplicou agravos, gafes e bravatas que terminaram colocando-o num
isolamento total. Uniu contra si os próprio os segmentos sociais
nostálgicos da era Mubarak, que representam quase 30% da população, as oposições
laicas de esquerda e islâmicas moderadas que representam outros tantos e
conseguiu, ao final, a façanha de colocar contra si até mesmo os
salafistas do Al Nur, partido islâmico ideologicamente ainda mais radical
que a própria Irmandade mas que, curiosamente, preferiu aliar-se à
oposição laica e às forças ligadas ao “ancien régime”, do que ficar com
seus irmãos-inimigos.
Foi
afinal um golpe de estado? Formalmente, sim. Um presidente deposto a força
apenas concluído o primeiro de seus quatro anos de mandato, numa situação de
grande isolamento e impopularidade por uma operação militar. Esta, no
entanto, foi reivindicada por um enorme movimento de massas que levou os
militares inicialmente a intimar Morsi à composição e, depois, a enxota-lo
do palácio. Na enorme fragilidade institucional vigente o evento talvez seja
mais precisamente caracterizado como uma deposição “à quente”, dentro de uma
crise político-institucional aguda. Foi mais um pronunciamiento,
do estamento militar erigido um “poder moderador” e disposto a prevenir uma
guerra civil que um “golpe militar” clássico.
Há
outros exemplos históricos de desenlaces militares desse tipo. A queda da
IV república francesa, que levou o general Charles de Gaulle a voltar ao poder,
em maio de 1958. E já houve golpes democráticos, como foi o 25 de
abril de 1974, em Portugal, que depois virou a “revolução dos cravos” mas que
foi do ponto de vista operacional, um clássico golpe militar só que contra uma
ditadura salazarista-colonialista. Podemos listar nessa categoria a deposição
de Getúlio Vargas, do Estado Novo, ao fim do Estado Novo, em 1945.
No
entanto, a preocupante analogia que mais vem à mente é o golpe
preventivo dos generais argelinos contra o FIS(Frente Islâmica da Salvação, na
Argélia), de 1991. Também atendendo as súplicas da classe média laica,
apavorada com a perspectiva de uma república islâmica, o golpe produziu uma
sangrenta guerra civil. O FIS acabara de vencer as eleições e nem
chegou a tomar posse. A grande diferença é que na Argélia o golpe fora
preventivo. No Egito, as Forças Armadas deram respaldo e garantiram
governabilidade à Irmandade Muçulmana --uma vez garantidos seus próprios
privilégios-- até vê-la totalmente desgastada, isolada numa crise
terminal, com mais de 70% dos egípcios contra. Só então agiram.
Não
é possível, neste momento, nem louvar “uma segunda revolução da Praça Tahir”
nem condenar cabalmente “um golpe militar”. É preciso aguardar os
desdobramentos. É fundamental ajudar o Egito a sair dessa situação tão difícil
e perigosa. Uma suspensão da ajuda econômica norte-americana poderia ser
catastrófica. É fundamental é evitar um "cenário argelino"
mantendo um diálogo com a Irmandade e evitando a repressão brutal.
A melhor chance seria a de recompor as instituições e eleger o mais
rápido possível um novo governo e um novo congresso, devidamente legitimados. A
mais alta prioridade parece ser a de evitar o desastre econômico iminente, por
um lado e a guerra civil, por outro. É um desafio gigantesco para o Egito
com fortes implicações para todo o resto do mundo.
O
drama egípcio é ilustrativo da crise da governabilidade (tanto a
democrática quanto a despótica) na era da crise econômica e climática
global. O colapso da agricultura e a crescente falta d’água, por razões
climáticas, são um fator menos reconhecido das rebeliões árabes. Os
governos parecem derreter rapidamente, mesmo quando logram certos
sucessos, como Morsi, no início. Parece haver uma tendência à
entropia e à pulverização. O poder de estado, de todo tipo, parece diminuído
frente a forças centrífugas. Para alguns vivemos na iminência de uma era dos
estados falidos. A Somália e a Síria seriam experiências percussoras. O pior,
no entanto, não é certo. De qualquer maneira é patente que “tudo que é sólido,
desmancha no ar”.
E
não apenas no Egito...
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