(publicado em 4/3 no Estadão)
D.Pepe Figueres |
É comum escutarmos que as restrições à
liberdade de expressão e de imprensa, a ausência de eleições livres, de pluralismo
político ou de alternância, a mais de meio século da revolução cubana, se justificam pelas suas conquistas na
educação e na saúde e pela ausência de fome e miséria absoluta na ilha. O
argumento jamais se sustentou na comparação com outra revolução que a precedeu
em onze anos: a da Costa Rica, de 1948, que
obteve notáveis avanços em educação e saúde e garantiu um padrão de vida muito
mais elevado, sem o sacrifício das liberdades, do pluralismo, do respeito aos
direitos humanos e de um judiciário independente.
Hoje a maioria de sua
população é de classe média, seu salário
mínimo é 15 vezes maior que o de Cuba, seu PIB e a sua renda per capita são os
mais altos da região. Há três vezes menos suicídios que em Cuba. Costa Rica tem políticas ambientais e ecoturismo de referência
internacional e ambiciona tornar-se o primeiro país do mundo carbono neutro.
A revolução de 1948, liderada por Don Pepe
Figueres, derrubou o regime oligárquico do presidente Teodoro Picado e do seu
mentor político Rafael Calderón Guardia que fraudavam sistematicamente as
eleições como na nossa velha república. Foi desencadeada em reação a um
“autogolpe” --queimaram as listas com os resultados eleitorais privando da
vitória o candidato progressista Otilio Ulate e assassinaram um dos líderes
oposicionistas, Carlos Luiz Valverde.
Detalhe curioso: o pequeno partido
comunista local, o PVP, apoiava ativamente o regime oligárquico. A
desmobilização de suas milícias em troca da garantia aos direitos sindicais e
da sua legalidade, acertadas numa
dramática negociação entre Figueres e seu secretário geral, Manuel Mora, na floresta de Ochamongo, foi decisiva para a relativamente
incruenta vitória da revolução após 40 dias de combates. A junta revolucionária,
liderada por Pepe Figueres, nacionalizou
os bancos para democratizar o crédito --até então exclusividade da burguesia compradora (importadora)-- permitindo desenvolver a agricultura e
indústria.
Investiu obsessivamente na educação,
instituiu a autonomia do judiciário. Dissolveu seu próprio exército
revolucionário, depois de uma tentativa de golpe do então ministro da defesa
Edgard Cardona, inconformado com o tratamento leniente dado por Pepe Figueres
aos comunistas. Isso não o impediu de derrotar, com o povo em
armas, uma invasão do ditador Anastasio
“Tacho” Somoza (o pai), da Nicarágua,
onde se haviam exilado Picado e Calderón. Ao final de dezoito
meses, Figueres entregou o governo a
Otilio Ulate, legitimamente eleito nas eleições “meladas” do ano anterior,
apesar de notórias divergências entre ambos.
Voltou a sua fazenda Lucha sin Fin onde ficou até 1953 quando
disputou democraticamente e foi eleito presidente. Cercada de ditaduras por
todos os lados até anos recentes Costa Rica jamais deixou de promover eleições
livres a cada quatro anos.
Poderia ter sido assim em Cuba onze anos mais tarde? Pepe apoiou Fidel com dinheiro e armas. Foram
amigos mas romperam quando Fidel aliou-se ao bloco soviético.
O contexto da
guerra fria --em 1948 nos primórdios, em
60 no apogeu-- com uma quase imediata hostilidade
norte-americana à revolução cubana fizeram a diferença, bem como,
a personalidade de Fidel. Entre os líderes das duas revoluções
ressaltam diferenças de idade, origem
social e experiência de vida: Pepe, filho de um modesto médico catalão, era
pequeno fazendeiro, tinha 42 anos ao
liderar sua revolução. Conhecia bem os EUA onde estudara. Sua primeira esposa,
Henrieta Boggs, era americana. Ele sabia
explorar com habilidade as contradições internas em Washington e nunca quis se
aliar à URSS embora tenha nacionalizado
a United Fruit o flagelo das
repúblicas bananeiras.
Fidel, filho de
um grande latifundiário de origem galega, era universitário quando chefiou o
assalto ao quartel de Moncada. Depois, conheceu
apenas a prisão, o exílio e Sierra Maestra.
Pepe era de ouvir, negociar e pactuar.
Fidel nasceu para mandar e ser obedecido.
Com pouco sangue e sem paredón a revolução de 1948 não
figura no panteão histórico-jornalístico. É praticamente desconhecida ao
contrário das revoluções trágicas ou das derrotas heroicas dos mártires, não
importa o quão patéticos ou desavisados. Uma revolução com final feliz, um país que a 65 anos “caiu numa
democracia” para nela permanecer, até
hoje, um
líder revolucionário que resolve abrir mão do poder para depois disputar
eleições livres, em 1953 e 1970, são
decididamente, indignos do rol de eventos e personagens históricos de primeira
linha...
Pepe, que gostava de definir-se como “socialista utópico”, nunca cultivou Patria o Muerte ou outro necrófilo brado retumbante do gênero. Seus
compatriotas, los ticos --os costarriquenhos-- pacíficos e cosmopolitas, são com toda probabilidade mais felizes. No
entanto, a felicidade --gota de orvalho
numa pétala de flor-- pelos vistos não é um indicador relevante no fazer
História do nosso tempo.
Essa pacata democracia sexagenária, ainda que em terra
de tantos vulcões, não evoca o menor romantismo, não vale sequer uma camiseta
ou boina negra com estrelinha vermelha.
Mas constitui intenso objeto de desejo na “geração Y”, de Yoani, dos filhos
daquela outra revolução, a tão exaltada em prosa e verso.
Combatentes da revolução democrática de 1948 na Costa Rica |
Pepe Figueres: abriu mão do poder conqistado pelas armas e elegeu-se presidente, democraticamente, em 1953 e 1970 |
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