05/09/2012

Michelle, impecável


 O primeiro dia da convenção democrata, em Charlotte, Carolina do Norte,  marcou um contraste absoluto com a republicana de Tampa, Flórida. Furacão à parte, a republicana foi bem menor em público, vibração e poder de reverberação. Ambas são super-representativas do que representam. De um lado o partido dos homens brancos, religiosos, conservadores ou ultraconservadores que acreditam numa sociedade darwiniana onde o vencedor leva tudo, o governo é um estorvo e a recuperação da economia depende apenas dos ricos ficarem mais ricos com uma drástica redução de impostos. De alguma forma  essa pujança dos bem sucedidos percolará --não explicam bem como--  para o resto dos americanos, compensando os cortes de gastos públicos com educação, assistência médica e social, infraestrutura e tudo mais com exceção dos gastos militares. Acredite se quiser...

 Do outro lado, em Charlotte, uma plateia multirracial, multicultural formada por uma pletora de minorias que acabam por compor, sociologicamente,  a maioria da população atual e, ainda mais, a futura dos EUA. Nela as mulheres e os latinos representam dois componentes fundamentais. Em Charlotte predomina a classe média norte-americana, no passado a grande base daquela sociedade,  hoje premida pela brutal concentração de renda nas mãos dos ricos, desde o início dos anos 80, com Ronald Reagan e exacerbada pelos oito anos de George W Bush.  O outro lado da moeda: o aumento galopante da pobreza e da mobilidade social para baixo, pela primeira vez desde a grande depressão dos anos 30. Essa classe média continua fiel ao New Deal de Franklin Roosevelt, ao papel do estado regulador e indutor para garantir um futuro melhor para seus filhos e um velhice digna para seus pais.

 Ao contraste na paisagem humana corresponde também um de vibração e entusiasmo. Os republicanos são mais odientos, focados no anti-Obama e numas frases de efeito que soam tremendamente bizarras, artificiais. A principal é essa tentativa de utilizar o mote decisivo de Ronald Reagan contra Jimmy Carter, num debate de TV da campanha de 80: “você está melhor ou pior do que há quatro anos?” Parece um auto cilada porque dificilmente alguém, não acometido de amnésia aguda,  pode pretender que os EUA estavam melhor nos últimos dias de Bush, em 2008, com milhares de empregos perdidos todos os dias,  iminência de uma depressão,  quebra da indústria automobilística, do sistema bancário e de seguros e duas guerras sangrentas com dezenas de soldados mortos por semana.  Autistas,  os republicanos se comportam como se nada tivessem a haver com George W Bush e culpam Obama pela crise. Isso cola??? Parece inverossímil mas o fato de Mitt Romney estar com metade das intenções de voto mostra que, eventualmente, pode até colar, dependendo as circunstâncias de uma disputa difícil.

 O grande problema dos democratas é que o eleitorado dos republicanos está mais mobilizado pelo seu ódio a Obama pelo racismo --hoje menos explícito--  mas que sem dúvida ainda explica a intensidade com que eles execram o primeiro presidente negro. Já base dos democratas cultiva suas decepções. Àquele momento maravilhoso de 2008, àquele “yes we can” não correspondeu uma melhoria clara das condições de vida. No máximo preveniu-se mal maior e estabeleceu-se uma base para um futuro melhor.  O poder do presidente dos EUA, obstruído pelo congresso republicano, premido pela crise mais global com a catástrofe do euro e o recuo dos emergentes, não é de natureza da tirar o país do atoleiro pelos próprios cabelos. Roosevelt, eleito em 1932, devolveu aos americanos o otimismo e mitigou o desemprego, conteve a depressão mas não saiu dela rapidamente. Os EUA só venceram definitivamente a crise com o grande esforço da II Guerra. Nesse contexto o que pode derrotar Obama, num país de voto facultativo,  é a apatia da base democrata decepcionada pela impotência do seu superherói diante da kriptonita econômica.

 Para fazer frente a isso os democratas entenderam que precisariam tocar fogo no circo. E foi isso que a primeira noite da convenção de Charlotte conseguiu a ponto de levar o veterano e algo cínico James Carville quase às lágrimas, na CNN, cujos outros comentaristas e âncoras, uns pedantes, pareciam não perceber a magnitude da sacudida que o evento estava provocando em dezenas de milhões de telespectadores. Infinitamente mais bem coreografada que Tampa, a festa democrata foi altamente bem focada e competente na  sua comunicação. Grandes discursos. Destaque absoluto para três: do governador negro de Massachusetts: Deval Patrick, do key speaker latino, prefeito de San Antônio Julián Castro e, de forma esplendorosa, Michelle Obama.

 Ela é tão boa quanto o marido. Perfeito domínio da emoção, da voz, da postura corporal e da expressão facial. Uma narrativa não-política, de mãe e mulher de classe média, solidária e preocupada com os outros, de uma eficácia política certeira. Uma flechada no coração de milhões de mulheres e homens, meio desanimados com a crise, dispostos a ficar em casa na dia da eleição, que recebem um choque de emoção. Michelle conseguiu o ponto máximo do discurso político bem sucedido: combinar razão e emoção com grande graça e elegância. A mensagem para os americanos é: Obama e Michelle são gente como a gente, a situação pode estar difícil mas eles estão do nosso lado para o que der e vier. Num certo aspecto nota-se aí um "efeito Lula", sobre as classes C e D brasileiras, em 2006: não importam as mazelas, o mensalão, etc... Lula é nós lá. É diferente porque a economia no Brasil estava melhor naquele momento mas, por outro lado, não houve escândalos de corrupção no governo Obama. De qualquer maneira o fenômeno de amor é similar: gostamos do cara e pronto!

 Obama certamente construirá um discurso econômico eficiente e em termos factuais os democratas sobrepujam seus adversários no debate aberto. Mas isso não será o decisivo. O decisivo será o despertar de um entusiasmo que pareceria enterrado, impossível de reeditar mas que na primeira noite de Charlotte mostrou  poder ser revivido. Yes we can, again, porque Obama é nós lá. Essa foi a mensagem de Michelle. Certeira, impecável. 

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