O
primeiro dia da convenção democrata, em Charlotte, Carolina do Norte, marcou um contraste absoluto com a
republicana de Tampa, Flórida. Furacão à parte, a republicana foi bem menor em
público, vibração e poder de reverberação. Ambas são super-representativas do
que representam. De um lado o partido dos homens brancos, religiosos,
conservadores ou ultraconservadores que acreditam numa sociedade darwiniana
onde o vencedor leva tudo, o governo é um estorvo e a recuperação da economia
depende apenas dos ricos ficarem mais ricos com uma drástica redução de
impostos. De alguma forma essa pujança dos bem sucedidos percolará --não explicam bem
como-- para o resto dos americanos, compensando os cortes de gastos públicos com
educação, assistência médica e social, infraestrutura e tudo mais com exceção
dos gastos militares. Acredite se quiser...
Do
outro lado, em Charlotte, uma plateia multirracial, multicultural formada por
uma pletora de minorias que acabam por compor, sociologicamente, a maioria da
população atual e, ainda mais, a futura dos EUA. Nela as mulheres e os latinos representam
dois componentes fundamentais. Em Charlotte predomina a classe média norte-americana, no
passado a grande base daquela sociedade, hoje premida pela brutal concentração
de renda nas mãos dos ricos, desde o início dos anos 80, com Ronald Reagan e exacerbada pelos oito anos de George W Bush. O outro lado da moeda: o aumento galopante
da pobreza e da mobilidade social para baixo, pela primeira vez desde a grande depressão dos anos 30. Essa classe média continua fiel
ao New Deal de Franklin Roosevelt, ao papel do estado regulador e indutor para garantir um futuro melhor para seus filhos e um velhice digna para seus
pais.
Ao
contraste na paisagem humana corresponde também um de vibração e entusiasmo. Os
republicanos são mais odientos, focados no anti-Obama e numas frases de efeito que
soam tremendamente bizarras, artificiais. A principal é essa tentativa de utilizar o mote
decisivo de Ronald Reagan contra Jimmy Carter, num debate de TV da campanha de
80: “você está melhor ou pior do que há quatro anos?” Parece um auto cilada porque dificilmente alguém, não acometido de amnésia aguda, pode pretender que os EUA estavam melhor nos últimos dias de Bush, em 2008, com
milhares de empregos perdidos todos os dias, iminência de uma depressão, quebra da indústria automobilística, do sistema bancário e de seguros e duas
guerras sangrentas com dezenas de soldados mortos por semana. Autistas, os
republicanos se comportam como se nada tivessem a haver com George W Bush e culpam Obama
pela crise. Isso cola??? Parece inverossímil mas o fato de Mitt Romney
estar com metade das intenções de voto mostra que, eventualmente, pode até colar, dependendo as circunstâncias de uma disputa difícil.
O
grande problema dos democratas é que o eleitorado dos republicanos está mais
mobilizado pelo seu ódio a Obama pelo racismo --hoje menos explícito-- mas que sem dúvida ainda explica a intensidade com
que eles execram o primeiro presidente negro. Já base dos democratas cultiva suas decepções. Àquele momento maravilhoso de 2008, àquele “yes we can” não
correspondeu uma melhoria clara das condições de vida. No máximo preveniu-se
mal maior e estabeleceu-se uma base para um futuro melhor. O poder do
presidente dos EUA, obstruído pelo congresso republicano, premido pela crise mais global
com a catástrofe do euro e o recuo dos emergentes, não é de natureza da tirar o
país do atoleiro pelos próprios cabelos. Roosevelt, eleito em 1932, devolveu aos
americanos o otimismo e mitigou o desemprego, conteve a depressão mas não saiu
dela rapidamente. Os EUA só venceram definitivamente a crise com o grande esforço da II Guerra. Nesse
contexto o que pode derrotar Obama, num país de voto facultativo, é a apatia da
base democrata decepcionada pela impotência do seu superherói diante da
kriptonita econômica.
Para fazer frente a isso os democratas
entenderam que precisariam tocar fogo no circo. E foi isso que a primeira
noite da convenção de Charlotte conseguiu a ponto de levar o veterano e algo cínico James
Carville quase às lágrimas, na CNN, cujos outros comentaristas e âncoras, uns pedantes, pareciam não perceber a magnitude da sacudida que o evento estava
provocando em dezenas de milhões de telespectadores. Infinitamente mais bem
coreografada que Tampa, a festa democrata foi altamente bem focada e competente na sua comunicação. Grandes discursos. Destaque absoluto para três: do governador
negro de Massachusetts: Deval Patrick, do key
speaker latino, prefeito de San Antônio Julián Castro e, de forma
esplendorosa, Michelle Obama.
Ela é tão boa quanto o marido. Perfeito
domínio da emoção, da voz, da postura corporal e da expressão facial. Uma
narrativa não-política, de mãe e mulher de classe média, solidária e preocupada
com os outros, de uma eficácia política certeira. Uma flechada no coração
de milhões de mulheres e homens, meio desanimados com a crise, dispostos a
ficar em casa na dia da eleição, que recebem um choque de emoção. Michelle
conseguiu o ponto máximo do discurso político bem sucedido: combinar razão e
emoção com grande graça e elegância. A mensagem para os americanos é: Obama e
Michelle são gente como a gente, a situação pode estar difícil mas eles estão
do nosso lado para o que der e vier. Num certo aspecto nota-se aí um "efeito Lula",
sobre as classes C e D brasileiras, em 2006: não importam as mazelas, o
mensalão, etc... Lula é nós lá. É diferente porque a economia no Brasil estava
melhor naquele momento mas, por outro lado, não houve escândalos de corrupção no
governo Obama. De qualquer maneira o fenômeno de amor é similar: gostamos do
cara e pronto!
Obama certamente construirá um discurso
econômico eficiente e em termos factuais os democratas
sobrepujam seus adversários no debate aberto. Mas isso não será o decisivo. O
decisivo será o despertar de um entusiasmo que pareceria enterrado, impossível
de reeditar mas que na primeira noite de Charlotte mostrou poder ser
revivido. Yes we can, again, porque
Obama é nós lá. Essa foi a mensagem de Michelle. Certeira,
impecável.
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