06/06/2020

Descarbonário: teaser 3, Nos dias da Rio 92



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Com Gil no I Encontro Planetário dos Verdes, durante a Rio 92
No que pese minha ficha ter caído, de fato, com a esquimó Sheilla em 2005, em Montreal, eu já registrava o tema mudança climática desde a Rio-92, mas apenas como um dentre diversos assuntos da pauta ambiental: Amazônia, isoladamente, Agenda 21, biodiversidade, desertificação, oceanos. Aquela conferência sobre meio ambiente e desenvolvimento da ONU, vinte anos depois da de Estocolmo, em 1972, onde tudo começou, foi chamada internacionalmente de The Earth Summit, a Cúpula da Terra. 

Foram dias muito corridos e concorridos. Fiquei zanzando entre a conferência oficial, no Riocentro, e a da sociedade civil, o Fórum Global 92, no Parque do Flamengo, com suas tendas brancas que abrigaram as ONGs de dezenas de países em um clima de happening permanente: indígenas, monges budistas, ambientalistas de diversos quadrantes, movimentos sociais para todos os gostos e de variadas ideologias. 

Era um caos surpreendentemente bem gerido por dois futuros parceiros, Roberto Smeraldi e Tony Gross. Eu era vereador pelo Partido Verde, no final do meu primeiro mandato, e candidato à reeleição naquele ano. Junto a um grupo de ativistas, distribuía meus boletins de mandato horas a fio e ia de tenda em tenda participar de debates. 
Eu tinha três grandes motivos de orgulho: toda aquela estrutura espalhada pelo Aterro do Flamengo, cujo quartel-general ficava no Hotel 

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Glória, fora viabilizada graças à chamada Lei Sirkis de isenção fiscal para projetos ambientais, que vigorou no município do Rio de Janeiro apenas naquele ano. A Secretaria de Fazenda havia sido fortemente hostil àquela renúncia fiscal, mas acabei convencendo o prefeito, Marcello Alencar, que aceitou promulgá-la por um ano. Também organizei o Primeiro Encontro Planetário dos Verdes, em um hotel em São Conrado. E, por fim, concedi a Medalha Pedro Ernesto, comenda-mor carioca, ao Dalai Lama no estádio do Maracanãzinho. 

Fui todo de branco para essa cerimônia e, quando nos demos os braços, senti aquela energia indescritível emanando do simpaticíssimo e carismático monge budista e líder do Tibete. Ele vinha acompanhado por todo um séquito internacional, dentre eles o ex-governador da Califórnia, Jerry Brown, que, décadas mais tarde, voltaria ao cargo para liderar a resistência de estados norte-americanos ao retrocesso climático de Trump. 

Dalai Lama sorria feliz que nem pinto no lixo com aquela medalha dourada com a qual meus colegas vereadores já haviam agraciado toda uma malta bem menos recomendável: banqueiros do bicho, milicianos matadores e ladravazes de toda espécie. Cada um homenageia quem lhe compraz... Minhas outras foram para o indigenista Sidney Possuelo, para o Rubem César Fernandes, do Viva Rio, e para o veterano militante brasileiro e herói da resistência francesa na Segunda Guerra, Apolônio de Carvalho. 
Na época, ninguém se preocupava muito em desagradar os chineses ao homenagear o monge do Tibete.

 Minha amiga Lucélia Santos, naqueles anos a brasileira mais famosa na China, por causa da novela A escrava Isaura, também gostava dele e sonhava mediar o conflito da China com o Tibete. De lá para cá, a posição da China tornou-se cada vez mais dura, e o próprio Dalai Lama, mais low profile. Ele participou junto de padres, pastores, rabinos, pais de santo e imãs de um grande ato ecumênico no Aterro do Flamengo. 

Os chefes de Estado se reuniam no Riocentro. Consegui entrar no pavilhão principal e chegar até o vestíbulo do superprotegido recinto onde eles negociavam. Minha credencial dava acesso apenas até a antessala. Ingressar naquele santuário maior onde, sob a presidência de Fernando Collor, se concentravam uns setenta chefes de Estado – inclusive George H. W. Bush, François Mitterrand, Helmut Kohl, John Major e Fidel Castro, protegidos pelos seus próprios seguranças – parecia impossível. Tímido, nunca tivera muito sucesso como penetra em festas. Ser barrado nos lugares era, para mim, um vexame. 

O presidente Collor, que seria alvo de impeachment em breves meses, conduziu os trabalhos em grande estilo, justiça seja feita. Dois anos antes, no Palácio do Planalto, tinha recebido Fernando Gabeira, Fernando César Mesquita e a mim em audiência para tratar do Summit. Fizemos intenso lobby pelo Rio de Janeiro, que então disputava com Curitiba e Manaus (São Paulo corria por fora) qual seria a cidade brasileira a sediar a então chamada ECO- 92. O presidente foi receptivo e simpático, não obstante aquele seu estranho olhar. Sentimos que o Rio ia emplacar. 

Naquela tarde no Riocentro, o tema era o clima e o chamado efeito estufa, e aguardava-se com ansiedade o discurso do então presidente norte- americano, George H. W. Bush, para saber se haveria acordo para uma Convenção do Clima na ONU. Misturei-me a um grupo de governantes, diplomatas e seguranças que voltavam ao recinto depois de um intervalo. Coloquei do lado de fora do bolso do paletó o brasão da minha espalhafatosa carteira de vereador – escarlate berrante com um escudo dourado – e segui em frente. Aquilo parecia carteiraça de um tira das galáxias e, passando pelos seguranças da ONU, penetrei no local. 

Ao entrar, dei logo de cara com Fidel Castro. “Mucho gusto, comandante.” Esperei por um aperto de mão bruto del caballo de Sierra Maestra, mas foi curiosamente suave, seguido de um small talk de alguns segundos sob o olhar atento de seus anjos da guarda. Segui andando. Passei pelo então premier britânico, John Major e, uns trinta metros mais adiante, me detive diante dos seguranças do Bush pai, que bloqueavam o acesso ao palco ao qual Collor acabava de convidar o ex-presidente norte- americano. Ele e Fidel não se olhavam, ostensivamente. 

O sujeito do serviço secreto tinha cara de poucos amigos, com o fio encaracolado daqueles walkie-talkies preso ao ouvido, e olhava alternadamente para os lados, virando a cabeça como um boneco de corda. Fiquei por ali mesmo. Bush pai chegou ao palco meio desengonçado. Falou de improviso, sem teleprompter. O discurso seria considerado arrogante pela imprensa no dia seguinte: “Os Estados Unidos não têm lições a receber de ninguém sobre clima” e “vamos exceder, repito, exceder, as metas de biodiversidade” são duas frases dele das quais me recordo bem. 

Visto retrospectivamente, no entanto, foi também um discurso histórico, pois, naquele momento, ele quebrou o suspense e, ao contrário da maioria dos prognósticos na mídia, anunciou que os Estados Unidos iriam, sim, assinar a Convenção do Clima, assegurando o sucesso da Conferência. Ele reconhecia oficialmente que o “aquecimento global” existia e algo urgente precisava ser feito a respeito. 

Já não se fazem mais presidentes republicanos como Bush pai... 

Naquele momento, os Estados Unidos eram o maior emissor de gases de efeito estufa, e a questão climática – tema novo na agenda internacional – assumia fortes conotações geopolíticas. Passava a fazer parte do então chamado confronto Norte-Sul. No Brasil, a questão do clima era fortemente dominada pelo Itamaraty e tratada sob essa óptica essencialmente geopolítica, para inconformidade de José Lutzenberger, ambientalista pioneiro do Rio Grande do Sul que Collor havia convidado para dirigir sua secretaria presidencial do meio ambiente. Na época, ainda não existia o ministério. 

O velho Lutz era uma figura excêntrica: magro, alto, loiro, narigudo. Parecia o Professor Pardal. Era muito rabugento. Algumas semanas antes, eu havia levado a Brasília para falar com ele o Mario Moscatelli, secretário de meio ambiente de Angra dos Reis, ameaçado de morte por ter embargado uma obra que desmatava um manguezal. 

Queríamos que o Lutz interviesse publicamente. 
“Se estão ameaçando é porque não vão fazer nada! Quando vão fazer alguma coisa não ameaçam”, sentenciou, impaciente, sempre reclamando: “Vocês, ambientalistas, não me deixam em paz, não tenho mais tempo para nada.” Quase o mandei à merda. Afinal, agora ele era do governo e tinha concordado em nos agendar. No entanto, conhecedor das suas esquisitices, limitei-me a lhe recordar as inúmeras ameaças que Chico Mendes recebera antes de ser assassinado.

 Logo nos despedimos, frustrados. Admirava o velho Lutz, mas fiquei puto da vida. Ele defendia justamente que a questão climática demandava a colaboração solidária de todos. Não podia ser tratada como apenas um mais um lance do enfrentamento Norte-Sul, uma negociação geopolítica e comercial de toma lá dá cá. 

Muitos anos depois, no Senado, Collor me relatou a visita de ambos a um silo para testes nucleares subterrâneos na Serra do Cachimbo. Tinha sido construído pelos militares no governo Geisel para testar a bomba atômica brasileira, que viria a ser evitada pela assinatura do Tratado de Tlatelolco e pelo acordo bilateral de não proliferação com a Argentina. “O velho Lutz ficou ali, bem na borda do buraco, espiando para baixo. De repente, tonteou, bambeou e quase caiu lá dentro. Já pensou? Imagina a situação!”, confidenciou o ex-presidente. Rimos. 

Lembro-me agora de um outro caso, também divertido, só que bem mais mundano com Collor. Foi em Araras, no casamento de seu filho, Joaquim. Compareci a convite da mãe, sua primeira esposa, minha querida amiga Lilibeth Monteiro de Carvalho. Fui com a minha mãe, Lila, e uma amiga dela, uma polonesa radicada na Bélgica a quem chamo de tia Elisabeth. 

Tia Elisabeth é, como diríamos, algo desavisada. Uma bela manhã, bem, bem cedinho, mamãe acordou com um barulho matraqueante de helicóptero nos fundos do seu prédio. Foi procurar tia Elisabeth e a encontrou debruçada no parapeito do terraço dos fundos que dava para o Morro Azul, no Flamengo, então dominado por uma belicosa facção do tráfico. Tia Elisabeth se deslumbrou com o helicóptero da Polícia Civil, parado no ar com um fuzil apontado para a favela. “Liliana, Liliana, Estão rodando um filme!” 
Desavisada, pois... 

Chegando em Araras, entreguei o carro ao valet e nos dirigimos à entrada da mansão onde seria celebrado o distinto casório. À porta, elegantíssimo, de terno e gravata Hermès, o pai do noivo saudava os convivas. Cumprimentei-o. Trocamos aqueles dois dedos de prosa de político: “Sirkis, sabe que votei em você para presidente?” Ele estava se referindo à minha mui quixotesca campanha presidencial de 1998 pelo PV. Agradeci. Não pude manifestar reciprocidade... 

Aí ele disse: “Você precisa ler o livro que escreveram contra a gente: se chama A máfia verde. O cara é negacionista e diz que essa história de mudança climática é tudo uma invenção. Temos que reagir.” Diante daquela manifestação de cumplicidade, fiquei pensando em algo simpático, que pudesse dizer-lhe, recordando sua elegante e amplamente reconhecida atuação na Rio-92 e sua decisão de escolher o Rio para sediá-la, mas fui interrompido por um comentário de tia Elisabeth em polonês para minha mãe: “Liliana, mas que mordomo bem apessoado!” 

“Elisabeth, que disparate! Este senhor aí é o ex-presidente do Brasil!”, retrucou minha mãe. A outra arregalou os olhos, pensou e sorriu, incrédula, achando que Lila devia estar gozando com a cara dela. Quem riu mesmo da história, às gargalhadas, foi a Lilibeth: “Eu avisei para o Fernando não ficar ali na porta cumprimentando todo mundo! Para quê? Aqui ninguém vota nele!” 

A imagem subsequente que me vem à memória daquele casamento é a entrada do pai e da mãe do noivo, Collor e Lilibeth – uma dupla inegavelmente “bem apessoada”, como diria tia Elisabeth –, seguidos de seus respectivos cônjuges daquela época: o dela, Walter Rosa, um modelo negro, alto, bonitão, com a Rosane Collor, naquele tempo ainda esposa do ex- presidente, mignonvestido curto, bolsa e sapatos de salto alto, tudo no mesmo tecido estampado de cores diversas e misturadas. “Combinando”, por assim dizer... 

Na época da Rio-92, além do velho Lutz, Collor fora influenciado por dois outros importantes pioneiros brasileiros na questão climática: o professor José Goldemberg e o diplomata Rubens Ricupero, que estiveram entre os primeiros a perceber a gravidade do tema. Ricupero ia além do entendimento predominante da questão à época no Itamaraty, primordialmente pelas lentes do jogo geopolítico. Entendia que o Brasil também teria que assumir suas responsabilidades. Para mim, naquele momento, a questão do “aquecimentoglobal” era um tema bastante novo, um entre outros da agenda ambiental: defesa da Amazônia, luta antinuclear, camada de ozônio, questões de ecologia urbana: poluição do ar, águas, lixo e ciclovias. Demoraria ainda uns bons anos para entender quão mais embaixo ficava o buraco.

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