31/05/2020

Descarbonário teaser 2: Negacionismo e inércia

Continuo postando alguns trechos do meu novo livro Descarbonário a ser lançado no Rio no dia 18 de junho, virtualmente mas com todo o ritual de um lançamento em livraria. 

O trecho de hoje trata do negacionismo climático e da inércia. Embora ataque eu sacaneie o negacionismo acho a inércia um inimigo pior.  A inércia dos governos, agentes econômicos e grande parte da sociedade. Ela é  ditada pela "tragédia dos bens comuns" --o que afeta a todos mobiliza menos do que aquilo que afeta a uma minoria compacta, concentrada, com interesse econômico imediato. Uma boa discussão. Confira:



Negacionismo e inércia

Desde os anos noventa, trava-se nos Estados Unidos, mais do que em qualquer outro país, um embate político com o chamado negacionismo que, hoje, ao final da segunda década do século XXI, tornou-se novamente política oficial na administração Donald Trump.

 Na Europa, tanto a direita quanto a esquerda aceitam melhor a ciência a respeito, e o negacionismo climático sensibiliza apenas uma franja de opinião diminuta, ridicularizada, cujo símbolo mais apropriado é o avestruz enterrando a cabecinha na areia para fugir do perigo. Margaret Thatcher, John Major, Jacques Chirac, Helmut Kohl, Nicolas Sarkozy e Angela Merkel foram todos líderes da direita europeia que, em diversos momentos, mobilizaram seus governos a fim de tomar posições proativas face ao aquecimento global. 

  Nos Estados Unidos, inicialmente, também havia certa concertação bipartidária sobre o tema, mas uma ação concentrada, fartamente financiada e corruptora, orquestrada pelos lobbies do carvão e do petróleo, logrou transformar o Partido Republicano e suas maiorias parlamentares em sólidos bastiões do negacionismo climático.

É uma repetição contemporânea da ação daqueles médicos pagos pela indústria do tabaco para irem aos programas de TV, em preto e branco, dos anos cinquenta e sessenta a fim de sustentar, categoricamente, que não havia provas seguras do nexo entre o cigarro e o câncer de pulmão.

Dentre os negacionistas climáticos, uns fingem que o aquecimento global simplesmente não existe. Outros o admitem como decorrente de ciclos naturais, mudanças no eixo da Terra, vulcanismo, raios cósmicos, não havendo nada a fazer a não ser se adaptar. Negam qualquer responsabilidade antrópica. 

Outros, ainda, reconhecem que o fenômeno existe, é provocado pela ação humana, mas consideram tarde demais para ser confrontado. Se já estamos ferrados mesmo, relaxe e aproveite, porque suas consequências serão suportáveis  no período das nossas vidas e as futuras gerações irão dar um jeito de se virar de alguma maneira. Certamente vão inventar alguma tecnologia para chupar o CO2 da atmosfera ou alguma solução de geoengenharia para esfriar o planeta. Por isso não há razão para deixarmos de queimar o carvão barato e a gasolina farta, e desmatar à vontade. Bom proveito.

Nos Estados Unidos, os negacionistas são poderosos. Estão muito bem organizados e têm amplos recursos. Seus mais eminentes financiadores foram os irmãos Charles e David Koch, o último recentemente falecido, cujas indústrias emitiram 24 milhões de toneladas de CO2 em 2011. Os políticos negacionistas apoiados por eles em suas campanhas eleitorais conquistaram influência preponderante no Partido Republicano. 

Fortes no Congresso norte-americano, impediram, em diversas ocasiões, restrições a emissões de gases de efeito estufa. Barack Obama teve que impô-las por decreto. A eleição de Donald Trump e sua decisão de desmontar o legado de Obama e as regulações da agência de proteção ambiental federal norte-americana (EPA), além do anúncio de que se retiraria do Acordo de Paris (legalmente  em 2020), deu novo alento ao negacionismo, mas também à reação em sentido contrário que mobiliza como nunca governos de estados e cidades, empresas e a juventude em defesa do clima.

Negacionistas “de esquerda” também existem. No Brasil, há alguns anos, eram liderados pelo então deputado comunista Aldo Rebelo. Para eles, tudo não passava de uma conspiração imperialista para impedir países emergentes de se desenvolverem economicamente. Uma fraude, nessa versão, não dos chineses, como garante Trump, mas do bom e velho imperialismo ianque ou de ONGs estrangeiras que querem nos roubar a Amazônia (nisso coincidiam com o discurso da extrema-direita). Embora suas narrativas sejam bastante variadas, o que os negacionistas climáticos têm em comum é uma feroz hostilidade à qualquer redução emissões dos GEE que imponham restrições ou obrigações às indústrias de carvão, petróleo ou automotiva ou que impeçam o desmatamento.

É compreensível que sindicatos de trabalhadores de minas e usinas térmicas a carvão possam se identificar com os interesses dessas indústrias, da Polônia à Pensilvânia, passando pelo Rio Grande do Sul. Trump cultivou politicamente essa revolta carvoeira em nome da defesa de seus postos de trabalho, mas a verdade é que hoje a energia solar nos Estados Unidos cria muito mais empregos, sem a poluição e as terríveis condições de trabalho das minas. E o uso do carvão continuou a cair no seu governo, por razões de mercado.

É certo, no entanto, que um contingente de trabalhadores do carvão perde com a descarbonização. A mesma ameaça se antecipa na indústria do petróleo, muito mais poderosa, mas cujos limites históricos também já se perfilam no horizonte embora num prazo mais dilatado. Uma ação inteligente em defesa do clima precisa levar em conta tais realidades sociais, saber apresentar alternativas econômicas palpáveis e programas de reciclagem socioprofissional, dar-lhes um tratamento sério e respeitoso – e até uma confortável aposentadoria –, evitando o puro e simples abandono desses trabalhadores, empurrando-os para o lado dos negacionistas e da extrema-direita. É preciso também começar a discutir com as companhias de petróleo saídas financeiras para seus futuros stranded assets (recursos imobilizados) à luz da atribuição de valor econômico às emissões evitadas, uma discussão que abordarei mais adiante.

Alguns negacionistas climáticos são acadêmicos ou jornalistas em busca de seus 15 minutos de fama. A mídia em vários momentos lhes deu guarida, à guisa de “ouvir os dos lados”,  contribuindo para anos a fio de imobilismo governamental. Em diversos momentos, passou a impressão de que existiria uma real controvérsia científica. Não existem “dois lados” de uma legítima polêmica científica: mais de 98% de todos os textos publicados em revistas científicas e o consenso avassalador entre cientistas de mais de 120 países, no IPCC, atestam que o aquecimento global é provocado por poluição de gases de efeito estufa de origem humana e constitui uma ameaça existencial que ainda poderá, eventualmente, ser mitigada.

Mais recentemente, a falsa controvérsia saltou para as redes sociais onde se consegue veicular, com amplitude, todo tipo de baboseira embalada em memes com alguma frase de efeito agressiva. Os negacionistas têm companhia. Cresce na internet a família dos defensores do terraplanismo. Para eles, a chegada do homem à Lua, em 1969, com Neil Armstrong e a famosa foto da Terra vista do espaço são fakes, e é mister restaurar a verdade cristã da gloriosa Idade Média: tremei hereges, a terra é plana como um disco de frisbee!

A suposta controvérsia acaba fornecendo um álibi confortável para outros governantes: “Bem, vejo que aqui há polêmica; uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Enquanto não houver uma conclusão, é melhor não fazer nada.” Sobretudo quando fazer algo signifique machucar o bolso de interesses aliados…

Na verdade, no entanto, o negacionismo climático não é, nem de longe, o maior obstáculo político a ser vencido. É o  insustentável peso da inércia, a longa e sinuosa distância entre a urgência de uma “descarbonização” drástica e a lentidão com que ocorrem as mudanças na economia, nas finanças, na governança e na própria sociedade em sua cultura de consumo, tanto nas democracias quanto nos regimes autoritários. O sistema econômico mundial continua essencialmente formatado para depender dos combustíveis fósseis e para financiá-los carbonizando mais e mais a atmosfera.

Isso resulta da chamada tragédia dos bens comuns, do clássico drama dos interesses difusos. O que a todos pertence, difusamente, mobiliza menos do que aquilo que afeta o interesse concentrado de alguns poucos poderosos. Na sociedade há segmentos empresariais, estatais, de classe média e de trabalhadores sindicalizados e setores automobilistas que se sentem ameaçados pelo fim do subsídio ao combustível fóssil ou pelo fechamento de uma usina termoelétrica a carvão. Isso ficou patente nas revoltas contra a taxa de carbono na Austrália e na França. Percebemos que esse problema existe até em um dos países que mais avançou em energias limpas, como a Alemanha.

A Alemanha já produz quase 30% de sua eletricidade a partir dessas fontes, mas o carvão ainda responde por 45% de sua geração elétrica. Subsistem, sobretudo na antiga Alemanha Oriental, milhares de trabalhadores em minas de carvão, linita ou jazidas a céu aberto. O país continua dependendo dele para gerar energia, sobretudo depois de ter decidido, precipitadamente, na sequência do acidente de Fukushima, antecipar o descomissionamento de suas usinas nucleares para 2022. Já em 2019, anunciou que fecharia sua última usina a carvão apenas em 2038!

O carvão  representa os primórdios da industrialização e da civilização moderna: um passado hobbesiano, cruel, da humanidade. Da vida curta, árdua e insalubre. Ainda hoje as minas de carvão apresentam uma taxa de mortandade elevadíssima. As vítimas de grandes acidentes em minas continuam a se acumular na China e em outros países. Sua forma de poluição do ar é a pior de todas. Provoca doenças respiratórias em populações inteiras. Dentre os maiores utilizadores de carvão da atualidade estão a China, Estados Unidos, Índia, Japão, Rússia, África do Sul, Coreia do Sul, Alemanha, Polônia e Indonésia.

Em 2017, as emissões de energia por queima de combustível fóssil voltaram a subir em 3%, em decorrência do uso maior por parte dos chineses das suas usinas a carvão em um ano de secas. A falta de chuva que prejudica a geração hidrelétrica tende a se tornar mais frequente no futuro, por causa da queda da vazão dos seus rios provocada pela mudança do clima. Aquilo que se esperava ter sido apenas um ano de inflexão foi seguido por um novo aumento de emissões por queima de combustíveis fósseis em 2018.

Nos Estados Unidos, onde as emissões das térmicas a carvão continuaram se reduzindo pela queda no consumo, em 2018 um considerável aumento das atividades na indústria e nos transportes acabou produzindo o primeiro aumento de emissões totais em onze anos.

O total de missões de 2017 chegou a 53,5 Gt de carbono equivalente, 49,2 Gt correspondeu à queima de combustível fóssil. Em 2018 houve um aumento de 2,7%. Em relação a 2019, os primeiros dados indicam novamente uma estabilização de emissões relacionadas à queima de combustível fóssil. Nesse ano houve forte aumento de desmatamento e incêndios florestais gigantescos na Rússia, Brasil, Indonésia e Austrália, ainda não devidamente computados quando escrevo. 

A recessão causada pela pandemia COVID 19 certamente reduzirá as emissões de CO2 por queima de combustível fóssil, em 2020. Haverá uma queda estimada, no momento, em 6% ou 7% dessas emissões. No entanto, aquelas por desmatamento podem não ser afetadas. Comparando abril de 2020 com o mesmo mês do ano anterior, ocorreu um aumento de desmatamento na Amazônia de  64%, por exemplo. (161% pelo Imazon)

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