31/12/2019

2020: ano de todos perigos (e de uma pequena chance)



A grande pergunta sobre o ciclo neo-fascista no mundo:  trata-se de um ciclo curto ou longo? A crise da democracia é passageira e superável ou se irá se instalar no tempo? A vantagem do autoritarismo na era da internet e do fake world é evidente. Podem tira-la do ar, confina-la com uma “grande muralha” de censura digital e, ao mesmo tempo, utiliza-la a fundo como arma contra as democracias que se fragilizam diante de movimentos de rápida mobilização, praticamente impossível satisfação e grande poder de desmonte. 

 O que aportou o movimento dos “gillets jaunes”, contra a taxa de carbono, aquele do Equador contra o subsídio à gasolina? O temerário movimento de Hong Kong, no que pese seu heroísmo tende a terminar mal: uma perda econômica abissal e uma intervenção militar da China num momento em Xi Jimping vive um momento de inédita fragilidade relativa. Tomara que eu esteja enganado.

 Os pontos “quentes” que podem degenerar em guerras, em 2020, são tantos:  esmagado economicamente –e contestado politicamente na sua área de influência, no Líbano e no Iraque, o Irã tende a mutiplicar suas provocações militares pois já se convenceu que Trump é um “tigre de papel”.  Mas o establishment militar norte-americano não é. 

 Israel, independentemente do resultado de sua terceira eleição, em março, se continuar privilegiando de forma absoluta a força e desprezando qualquer possibilidade de negociação poderá se ver num conflito no Líbano, Síria, Iraque e Gaza, ao mesmo tempo,  sofrendo perdas humanas que sua sociedade, dominada pela beligerância , paradoxalmente, nunca consegue aceitar. 

 Nenhuma superioridade tecnologia nem sua capacidade de literalmente destruir o Líbano, poupará Israel de uma chuva de mísseis do Hezbollah capaz de provocar danos internos consideráveis e que só poderá ser contraposta  por uma operação terrestre de  profundidade, com ocupação.  No frigir dos ovos nada substitui as botas no chão. Uma guerra terrestre tente  impor ao estado de Israel baixas que sua sociedade, que viverá como um drama terrível.  Esse é o grande paradoxo estratégico de Israel:  um modus operandi permanentemente agressivo –justificado, em parte,  pela falta de profundidade estratégica territorial--  mas uma relação muito frágil em relação às suas próprias perdas humanas.  Já o seu inimigo é capaz de suporta-las numa escala abissal. Os israelenses são brilhantes táticos capazes de vencer mil batalhas mas sua grande estratégia de medio e longo prazo carece completamente de visão. 

 O minueto de Erdogan, Putin,  Assad, Bin Salman  e o Aiatolá Khameney com curdos e sunitas sufocados, milícias xiitas se movimentando como coringas do Irã e uma revolta das sociedades civil do Líbano e do Iraque (potencialmente no próprio Irã), mais a guerra sem saída do Yemen,  tudo isso junto compõe um baita coquetel explosivo. 

 O jogo agora se estende ao Mediterrâneo no qual a Erdogan se alia a um dos governos rivais da Líbia em guerra com o protegido de Putin, Egito e dos Emiratos, o marechal Kalifa Haftar. O movimento tem relação com rivalidades petrolíferas em torno de Chipre (parcialmente ocupado pela Turquia) em rivalidade com a Grécia e Israel que também querem explorar as jazidas de petróleo e gás. 

 Na Ásia temos o bom e velho –e cada vez mais intrincado—conflito da Índia, em plena febre nacionalista, anti-muçulmana,  com o Paquistão, ambos nuclearmente armados. O Taleban aguarda pacientemente o momento de retomar o poder no Afeganistão.

  Temos também o grande jogo do mar da China, com Xi Jimping decidido a se impor como dono inconteste do pedaço, rivalizando com Vietnam, Japão e Taiwan apoiados pelos EUA. A aliança econômica, militar e estratégica da China com a Rússia é fato consolidado e Putin certamente vai continuar seu jogo de desestabilização da OTAN e da UE por um conjunto de formas de luta variadas desde ciberwars a ações militares como a da Ucrânia. Move-se com muito desembaraço mais confiante que nunca já que sabe que tem um patinho (ou um espião mesmo, no lato senso) na Casa Branca. O maior feito de inteligência de todos os tempos. 

Na Europa Macron se segura como pode, Angela Merkel está sumamente fragilizada e pode não terminar o ano, Boris Johnson ganhou sua aposta de curto prazo no Brexit mas agora os verdadeiros problemas começam, Savini está à espreita e a exceção ibérica sob tensão. 

 A Europa está ameaçada por uma nova onda de imigrantes, expulsos da África pelas guerras –ela tende a virar o epicentro do terrorismo islâmico--  e catástrofes climáticas.  

 O capítulo final da guerra civil da Síria: a eventual conquista do último bastião rebelde de Iblid, com três milhões de habitantes,  e da região curda que Trump abandona. 

 Mesmo querendo sair de qualquer jeito Trump ainda vai se encalacrar num conflito militar no norte da Síria e no Iraque onde suas tropas, residuais,  são um excelente alvo para provocações do Irã. Trump renegou um tratado internacional assinado por 12 países e iniciou uma guerra econômica sem tréguas, contra um país com a história e uma autoestima como é o Irã. Este simplesmente não vai render-se. 

 Donald, no seu infinito despreparo,  não entende esse fato elementar:   ou bem se busca um acordo e se o respeita  ou bem se almeja a guerra com todas suas consequências. Obama entendia isso bem mas foi crucificado, inclusive pelos “bem pensantes”, quando preferiu não se meter na guerra civil da Síria e se concentrar da destruição do Estado Islâmico. 

 O pano de fundo de todo esse potencial de perda de controle e novas guerras, mais sérias,  é, naturalmente,  o agravamento exponencial do aquecimento global que multiplica e agrava todos conflitos, produz migrações que tendem a reforçar a extrema-direita xenófoba nos países de potencial refúgio. 

A imigração só ira crescer e suas consequências políticas também.

E nós?

E o Brasil?  A economia, depois de cinco anos de depressão, pela simples natureza das coisas,  tende voltar a crescer alguma coisa. A reforma da previdência e o juro baixo ajudam. Deve haver mais  investimento interno. O internacional, que realmente poderia reerguer a sério a economia,  continuará hesitando por causa da instabilidade política diariamente insuflada por Bolsonaro. Por outro lado,  esse crescimento periga ser mais um voo de galinha. Apenas o investimento privado nacional não é suficiente sem um investimento público em serviços básicos e infraestrutura. Nisso os liberais tendem a ser tão ingênuos quanto os que vêm no investimento público a panacéia.  Ambos são necessários, bem dosados. 

 O crescimento provável do PIB, da forma que vai se dar,  dificilmente percolará para a maior parte da classe média e para os pobres mas poderá deter a perda de popularidade de Bolsonaro e leva-lo ao nível Trump (tipo 43% de aprovação). Continuará sendo minoritário na sociedade brasileira cuja maioria rejeita seu comportamento execrável e seu governo grotesco. 

 Ele continuará muito vulnerável no Congresso, contido nos piores excessos pelo STF e sonhando e encontrar alguma maneira de dar um autogolpe e virar ditador.  Esse é  o pano de fundo de toda sua gestalt, dos seus filhos e do guru. No momento as condições para tanto são escassas e só alguma grossíssima imbecilidade de alguma esquerda poderia, eventualmente,  ajuda-lo a tentar isso. As eleições municipais não irão fortalecê-lo, pode até haver um processo interessante de renovação nas prefeituras e câmaras municipais.  

 A grande questão de 2020 é, naturalmente, a eleição  nos EUA. Uma reeleição de Trump responderia àquela primeira pergunta sobre a natureza do ciclo histórico. Seria nesse caso um ciclo mais longo, uma  idade das trevas com um recuo dramático da democracia e a perda de qualquer possibilidade de se evitar uma catástrofe climática. 

 O diabo é que não dá nem para falar em “eleições nos EUA”.  Essas o Trump perderá de novo com uma diferença ainda maior do que os 2.8 milhões de votos de vantagem de Hillary, em 2016. As eleições que contam são as em alguns estados chaves para o Colégio Eleitoral –essa relíquia que seriamente compromete a pretensão-mor dos norte-americanos de se apresentarem como a melhor democracia do mundo. 

 As eleições de novembro 2020 serão decididas na Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Flórida. Há quem acredite que pode haver mudança na Georgia, Texas, Ohio e Arizona. 

 Concentrar fogo em alguns poucos estados para quem está no poder é relativamente fácil. Trump pode ser um imbecil na maior aparte das coisas mas como estrategista eleitoral, no sistema norte-americano,  revelou-se um astuto peso pesado.

 Os candidatos democratas me desesperam! Não vou entrar nos conteúdos, obviamente simpatizo com a maioria (mas não todos) propostos por Warren e Sanders –abomino seu sectarismo e as políticas "identitárias”--  mas esse não é o ponto. 

 O argumento de ambos de que só uma postura mais radical poderá inflamar e radicalizar “a base” e levar os puros e duros a votar se aplica aonde? Que os esquerdistas da Califórnia, de Nova York ou de Washington State compareçam ou fiquem em casa reclamando que o candidato democrata é demasiado conciliador não faz a menor diferença. A questão  é saber como essa questão se joga naqueles estados decisivos e estou convencido que é mais seguro garantir o voto dos independentes, centristas e dos republicanos anti-trump –são poucos mas podem ser decisivos—além de mobilizar tudo possível de jovens, negros e hispanos na base do anti-Trump mesmo. 

Por isso, pelo menos até agora, no que pese meu interesse por Pete Butgieg, disparado o melhor, embora não necessariamente o mais “elegível”, sou mais  uncle Joe. Com toda lerdeza Joe Biden é quem pode derrotar Trump nos estados decisivos. Não é a toa que é quem Donald mais teme.


 Feliz 2020, ano em que os pepinos voarão baixo...

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