A cidade, conquanto de
concreto, asfalto, tijolo, vidro --sem falar de horríveis esquadrias de
alumínio-- é também um ser vivo. Ela
nasce e, um dia, morrerá. Seu tempo é diferente do humano. Vivem e morrem
numerosas gerações enquanto a Cidade segue em frente. Claro, há cidades que não
existem mais, se perderam no tempo histórico, nos desastres ecológicos e geológicos,
nas guerras. De algumas não sobra quase vestígio que não seja arqueológico. Penso
em Cartago, arrasada até o chão e salgada pelas legiões romanas. Pompeia engolfada
na lava do vulcão Etna. Muito recentemente, a prosaica Paradise, na Califórnia,
totalmente arrasada por um desses incêndios florestais que vão tornar-se cada
vez mais frequentes e arrasadores com a mudança climática. O que será das
cidades litorâneas –inclusive do Rio de Janeiro-- com a elevação do mar, nas próximas décadas e
séculos?
Esse livro tangencia a vida e morte de cidades
mas na escala humana. Naquela das edificações que a mão de obra, arquitetura,
engenharia e economia em algum momento entenderam construir e, noutro momento,
por força do mercado ou, quase sempre,
decisões do poder político, literalmente sumiram do mapa. Foram perdidas para
as gerações atuais enquanto a Cidade foi se modificando, crescendo, mudando
seus modos de mobilidade, necessidades de moradia e trabalho, distribuição de
negócios, formatos e modos do comércio.
O Rio de Janeiro, aterrou-se praticamente para todos os lados que sua geografia
permitisse, desmatou e reflorestou, avançou sobre a baía e para tanto arrasou
seu morro central, o do Castelo. O Rio foi também pontilhado de destruições
numa escala micro: construções vítimas de conjunções do econômico com o político, de interesses e
ambições e, não raro, de idiossincrasias obtusas que uma ou duas gerações mais
tarde tornam-se incompreensíveis, abjetas.
Existe um Rio Perdido. Ficava naquele lugar
mas não mais. Alguns de seus espectros já não povoam a memória de ninguém vivo.
Encontramos suas imagens em branco e
preto nos livros de fotos antigas de nossa Cidade. Ninguém mais está vivo para
se recordar do Convento da Ajuda, dos pavilhões das Exposições de 1908 e de 1922
ou do próprio Morro do Castelo. Outros permanecem na memória da geração dos
mais idosos. Outros ainda na nossa, de meia idade. Tenho meu quinhão de memória do
Rio Perdido: me lembro, em cores vivas, do Palácio Monroe no final a Av. Rio Branco. Senado Federal e, depois, QG do EMFA(Estado
Maior das Forças Armadas) demolido no que é, até hoje, uma história bizarra, mal contada, dos anos do governo Geisel.
Era pequeno demais para me lembrar do
Mourisco cujo pavilhão foi abaixo quando eu tinha um ano de vida, mas que junto com a estátua do Manequinho,
mijão, permaneceu no nome do lugar. Não
faz parte desse livro, mas meu pedaço de
Rio Perdido mais candente –literalmente candente-- é o Hotel Vogue. Uma das minhas primeiras
recordações. Tinha quatro anos, estava na cozinha da casa de minha vó Vera, na
Avenida Atlântica, num prédio depois demolido para duplicar a Avenida Princesa Isabel, e vi o Vogue pegar fogo: a
tragédia de suas escadas de jacarandá alimentando as labaredas, um turista se
atirando para a morte pela janela, os caminhões dos bombeiros –passei uns anos
depois sonhando ser bombeiro também--
as sirenes uivando, as escadas Magirus, os esguichos das
mangueiras, as nuvens de fumaça e de
vapor. Hoje, passo por ali, vejo a pista
que sobe para a esquina da Avenida Atlântica
com aquele horrível prédio envidraçado. Me lembro da maresia na varanda do
apartamento da vovó e do farol da Ilha Rasa que, naquela época, projetava dois fachos amarelos e um verde,
sucessivamente.
Poderia, mas não me lembro da demolição, em
1962, do mercado municipal da Praça XV para dar lugar ao elevado com sua via
expressa que agora também faz parte de um Rio perdido, esse certamente, menos
deplorado. Também me eludiu completamente o fim, em 1970, da fábrica do Elixir
de Nogueira, um esquisito palacete na Praia do Russel. Lembro me bem, no
entanto, dos antigos postos de Salva Vidas que não sobreviveram à duplicação da
Av. Atlântica e ao alargamento da Praia de Copacabana, em 1970. Me faz lembrar
das dunas onde, clandestino, namorava.
Esse
livro também pinta uma história de sobrevivência. Prédios que sobreviveram até
chegar num tempo em que o antigo “retrofitado” virou bacana. O edifício da Sul-América
e o Nigri Palace, no centro; a Vila
Aymoré, na Glória, o antigo Hotel Serrador e o antigo prédio da Standard
Oil, na saída da Cinelândia. Cujos
cinemas, aliás, foram quase todos perdidos com a notável exceção do Odeon, último dos moicanos. Fazem parte de um outro Rio perdido aqui não mencionado, todas aquelas
salas transformadas em tempos pentecostais ou Casas Bahia: o Bruni Flamengo, o
Ópera. Ah, o velho São Luiz, o Asteca, o Rian, o Miramar. Dá um outro livro,
quem sabe.
Cada um de nós, cariocas, tem seu Rio Perdido,
sua memória da cidade como foi aqui e ali e depois deixou de ser. A ideia de
preservação percorreu um longo de tortuoso caminho para vencer a cultura do
“bota abaixo” e hoje o retrofiting está em alta, promissor. Quando a Cidade
voltar do buraco teremos menos Rio Perdido e mais Rio Recuperado. O passado
preservado e enriquecido com novos usos: combinações criativas entre o que foi e o que
será.
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